Janelas Abertas Textos

A sina itaparicana


Aqui vou eu também cumprindo a mesma sina de João Ubaldo Ribeiro. Sina contada por ele em tocante crônica. A sina de sempre voltar à Itaparica e se render de muito bom grado ao seu fascínio. Um não sei quê a nos fazer diferentes. Bem entendo o que Ubaldo quis dizer quando escreveu:  “...minha vida, meu pensamento, meus sentimentos e até minha maneira de ver e falar mudam assim que chego, mistério que nunca entendi direito. Passei boa parte da infância na ilha, na casa de meus avós maternos e no meio da vastíssima parentela de todas as extrações. Mas não fui criado lá. Contudo, não sei por quê, é a terra que me prende, da qual nunca me esqueço, onde sempre me sinto bem, onde julgo entender coisas que em outros lugares não entenderia.”  No meu caso o mistério é ainda maior pois nem nasci nem passei a infância em Itaparica.

Não adianta buscar explicação. É mistério e pronto. Basta saber, mais que isso, sentir, que, ainda usando as palavras de João Ubaldo, “é sempre bom voltar e é sempre, com perdão pelo lugar-comum que, aliás, nem quero evitar, uma emoção renovada rever as águas veneráveis da Baía de Todos os Santos e começar a respirar o ar da ilha, enquanto nos aproximamos daquela costa de marés mansas,...” E aqui vou eu, com minha amiga Mara, ótima companheira de viagem e de compartilhamento do fascínio de Itaparica, revendo emocionalmente essas calmas águas veneráveis, respirando esse ar encantado, absorvendo os azuis, os verdes, os ouros das acácias e dos pores-do-sol e me tornando outra pessoa, mais sensível, mais amorosa, talvez até um pouquinho sábia e com certeza, mais feliz.  Tudo isso enquanto recebo o carinhoso acolhimento dos amigos daqui.

Chegamos à tarde, o mar sempre belo, estava num daqueles dias em que a beleza excede  e não resistimos ao insidioso chamado. Mal arriámos as malas, trocamos de roupa e lá fomos nos rebatizar nas águas mornas, transparentes e deliciosas da prainha do balneário. De pronto o reafirmar de duas certezas. Primeiro de que em Itaparica não tem como se ser triste. Segundo, que de muito pouco se precisa para se ser feliz. Mergulhamos, nadamos, boiamos. Maravilha que não se pode descrever, só sentir.  O sol descendo dourava os azuis e tínhamos de ir porque logo viriam as queridas Betinha e Randra. Como de fato vieram. E nos abraçamos com carinhos porque as saudades precisavam ser desfeitas e alegrias do reencontro eram sem tamanho. Sentadas ali na amurada da orla ainda sob suspiros do crepúsculo, atualizamos notícias e conversamos sobre a comemoração do aniversário de João Ubaldo Ribeiro dentro do programa Café com Leitura da Biblioteca.

Mais tarde, lá estávamos Mara e eu, saboreando os especiais “bolinhos da vila” acompanhados do bom molho do chefe entre os goles do vinho enquanto nos submergíamos na noite itaparicana. Com alma leve, leve, o espírito em pleno sossego, contemplávamos o piscar de uma boia de sinalização, as luzinhas em colar orlando as terras do outro lado do canal ou da iluminação do mastro de veleiro passante pelo rumorejante mar obscuro. Depois, de volta para o hotel, andando devagarinho pela calçada ao lado do mar. Era possível até ouvir passos e vozes de antanho a nos contar façanhas da época das invasões holandesas ou das batalhas da guerra da independência, ou casos de pescadores, ou cochichar de namorados, ou cantigas de rodas ou doces acalantos. Assim a sedução se cumprindo logo na chegada.

Nos dias seguintes a coisa só fez se intensificar começando cedo no variado café da manhã degustado na varanda arcada quase sobre o mar, com direito à inquietude sonorosa dos sanhaços e bem-te-vis entre os dourados cachos das acácias. Ao largo, um barco pó-pó-pó, se indo pra rotina do dia. Depois, a afetiva recepção sucessiva dos amigos: a elegante delicada Carmem, o sempre gentil Antonio, a carinhosa Noêmia acompanhada de Zete e o pequeno, já não tão pequeno, Pedro, o versátil Raimundo Coelho, o  irreverente Yulo coberto de razão e de sentimento de pertencimento a essa terra que adotou;  Roberto, vindo da Coroa só para me ver trazendo de presente as mudinhas de junquilho. E por falar em presentes, também recebi mimos de Betinha e de Isabel, a grande amiga mineira-itaparicana-cidadã-do-mundo de  há uns quatro anos, mas que não nos encontramos pessoalmente e lamentavelmente ainda não foi dessa vez, pois quando chegou eu tinha saído. Mesmo assim deixou sacolinha com suas dádivas  para mim. Ainda faltou gente porque foram apenas três dias.

Houve o jantar no solar dos reis, entre paredes e colunas de pedras, barro e cal feito de conchas marinhas a nos remeter ao pretérito, quando originalmente o casarão foi erguida pelo armador de baleia João Francisco de Oliveira, ou quando serviu de pouso a  D. João Vi em sua passagem pela Bahia rumo ao Rio de Janeiro, a D. Pedro I na época da independência e muitos anos depois a Dr. Pedro II.  Houve o almoço no Largo da Quitanda contemplando o mar e tendo por sobremesa a taboca, vendida à moda antiga e os sorvetes de coco verde feito com a própria água do coco e o também delicioso sorvete africano, todos sem gordura hidrogenada, da sorveteria do artista plástico Sérgio Saldanha. Em Itaparica é assim, uma sorveteria  é de artista plástico e a outra do escritor contador de casos Gregório Gomes, agora, infelizmente, finado.

Houve o encanto do canto de prainha lisa, transparente abaixo ao cais, que além do banho sublime tornou-se ponto de descobertas de interessantes pessoas amigáveis de conversas fartas:  Rosângela, a  corajosa, desprendida que viera sozinha passar o dia em Itaparica a fotografar tudo  e a se fotografar; o maduro casal Cândido e Rosa que apesar de amorosos mantinham a sabedoria de morarem cada um em suas casas, ele em Mar grande e ela no sítio na Misericórdia;  a simpática Jane, vinda de Nazaré das Farinhas a revelar lúcida consciência social. Todos surpreendendo nas conversas em que passavam lições de vida.

E ainda teve mais, teve a divertida pescaria da amurada defronte do hotel. Um monte de gente de uma mesma família misturados a vários outros, com varas de pescar, gererê de cabo comprido, tarrafa, todos solidários e entre eles, se destacando pelas observações e dicas, estava Branca. A  experiente pescadora, religiosa sem ser alienada e um tanto filósofa com quem batemos bom papo. A folia era grande. Uns gritavam, “olhe a agulhinha”, “vai, vai”. E o do gereré corria tentando pegá-la, mas já na boca da armadilha, a bichinha escapava, apesar da animada torcida. Isso umas três vezes. Alguém se queixava que os robalos apenas abocanhavam os camarões frescos da isca (segundo Branca, robalo só come camarão fresco, se já estiver passando, eles não querem saber) sem se prenderem no anzol. De repente uma tainha saltou e novos gritos de incentivo como acontece numa partida de futebol quando o jogador está na boca do gol. E aí foi a vez da tarrafa ser jogada. Gritos de festejo de vitória, mas qual o que, a noite não estava para pescador.

Dormimos tarde nessa noite, mas muito bem, obrigada, sob os efeitos da fina sedução de Itaparica.


 

    Pelas Veredas de Minas


Quando eu vim de Minas/ Trouxe ouro em pó/ Quando vim”. Eu trouxe ouro, sim. Não este da canção de Xangô da Mangueira, consagrada na voz de Clara Nunes. Não o ouro que reluz, seduz, enceguece e faz o bicho homem perder a dignidade e, junto com ela, a alma. Mas outro, que embora invisível, é igualmente áureo. O ouro verdadeiramente indelével das finas fortes impressões sentidas, que tanto enriquecem o mundo interior de quem se dispõe a cultivá-lo.

Foram apressados poucos dias em cidades mineiras, ainda assim o suficiente para avivar sensações experimentadas em viagens anteriores por estas terras. Chegando a Belo Horizonte, alugamos um carro no aeroporto e seguimos para Formiga, onde o grupo Caboco Capiroba ia defender a música Sobradinho, do meu filho Mario Espinheira, no 41º Festival Nacional da Canção. Sem mapa nem conhecimento prévio, rodamos além da conta normal, mesmo nos valendo da admirável gentil solicitude dos mineiros.

Nada de queixas, apesar de sermos cinco, com bagagens (incluso dois violões), apertados num gol. Estávamos com boa disposição e a conservamos ainda quando sentimos bocas e narizes se ressentirem da falta de umidade no ar e a fome chegar. O montanhoso verde mundo, que corcoveando passava por nós, compensava o desconforto, sobretudo com tanto alegres ouros dos ipês em flor brotando dos grotões da mata e exibindo-se às margens da estrada. Inda mais com o renque dos elegantes buritis, aqui e ali, a remeter às mágicas sendas de João Guimarães Rosa. Como ele, suspirei: ”Esses gerais são sem tamanho”. Eram e envolviam.

Sem tamanho também era a fome ao entramos num restaurante e encontramos um imenso fogão de lenha acesso, mantendo a quentura das panelas e tachos de ferro ou barro. Dentro, as saborosas, embora nada light, iguarias mineiras, que podíamos comer à vontade, apenas pagando R$10,00. Não nos fizemos de rogados, ora pois. E ainda de quebra, fomos agraciados com a mineirice de autênticos caipiras que tentaram nos pegar peça usando ingênuas arapucas. Salvou-nos a desconfiança baiana, sem, contudo, poupá-los de boas risadas. Novas compensações aos apertuchos da viagem.

Enfim, chegamos a Formiga, cidade movimentada, que ao cair da tarde oferece inusitado espetáculo: uma centena de garças brancas se aloja na imensa gameleira, plantada à beira do rio, bem perto da ponte de intenso tráfego. De longe, a árvore parece totalmente florida. Fora isso, se via a curiosa arquitetura labiríntica comum a todas as casas comerciais, os intrigantes bancos na Praça da Matriz, o frio intenso, mormente no alto do Cristo donde se avista toda a cidade, e o Festival. Voltamos no sábado à BH, onde Matilde faria concurso e João e Clara retornavam à Salvador. A esta altura, Luciana, que viera depois, já se incorporara ao bando.

No domingo chegamos a Ouro Preto em tempo de pegar o trem para Mariana. Seguidos apitos anunciaram a partida e mais uma vez Guimarães Rosa me veio à mente: “Melhor, para a idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele”. Sem dúvida: bom seria ficar indo e vindo de trem de qualquer lugar. De fato, a idéia ia se abrindo e a fantasia entrando à medida que os vagões serpenteavam nas encostas rochosas à beira de despenhadeiros, entrando e saindo dos quatro túneis, prosseguindo por via estreita diante das montanhas, dos vales com rios e o lago em forma de coração, das cascatas, da mina de ouro ainda em atividade. Até parar na velha estação. A realidade se transfigurara. 

Vimos as muitas igrejas; os sobrados, a praça-jardim com coreto, laguinho, crianças, casais de namorados e velhinhos. Descobrimos pitorescos detalhes. Mas eu não era eu e, do tempo, não sabia qual. Voltamos pelo mesmo trajeto de trem com impressões ainda mais exacerbadas. Em Ouro Preto e Mariana o que se respira é ontem, como diria o poeta Ruy Espinheira Filho. Ali, os mortos antigos estão mais presente do que os vivos, e impõem suas vontades, como fizeram com Cecília Meireles, levando-a a escrever o magistral “Romanceiro da Inconfidência,” em que reconta a saga da Inconfidência Mineira.

Anos depois da publicação do livro, ela revelou como se deu o impulso inicial para a constituição da obra: “Todo o presente emudeceu, como plateia humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. Vim com o modesto propósito jornalístico de descrever as comemorações de uma Semana Santa; porém os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores; (...) na procissão dos vivos caminhava uma procissão de fantasmas (...). Era, na verdade, a última Semana Santa dos inconfidentes: a do ano de 1789”.

Imagino o que se passou, não apenas porque aqueles poemas só poderiam ter sido escritos por quem participara do episódio (nem que através de transe), mas também porque vivenciara algo parecido enquanto escorregava nas descidas e arfava nas subidas das íngremes ladeiras, debaixo de névoa,  a emendar os frios que de manhãzinha subia dos vales e à noite descia sobre as ruas desertas; ao ouvir meus próprios passos ressoarem como de outrem no escuro luzidio calçamento pé-de-moleque, espaçadamente iluminado pela difusa luz dos lampiões; quando andava encasacada por entre o casario colonial dispostos em diversos planos das montanhas; ao admirar chafarizes e as barrocas igrejas de largos átrios contornados por muretas de pedras; ao visitar museus; ao galgar escadas de altos degraus rangentes ou durante jantar no Calabouço. As percepções se alteraram, ficava à mercê de sugestões.

Então, pude escutar, tal como o tão citado Guimarães Rosa, o “sussurro sem som, onde a gente se lembra do que nunca soube”. O sussurro vinha de muito longe no tempo, mas era vívido e trazia: tropel de cavalos, matracas nas procissões, picaretas em veios, correntes arrastadas por condenados, declamações de poemas árcades, gritos, xingamentos, cochichos das intrigas e delações. E seguindo Cecília lembrei do que não sabia: “... Atrás de portas fechadas, /à luz de velas acesas, / uns sugerem, uns recusam, / uns ouvem, uns aconselham. /Se a derrama for lançada, / há levante, com certeza...///...Atrás de portas fechadas, / à luz de velas acesas, /entre sigilo e espionagem, / acontece a Inconfidência.../”

Mais havia para dizer, mas o espaço acabou. Resta cantar o hino de Minas (letra de José Duduca Morais ajustada à melodia da valsa italiana “Viene sul Mare”: “Oh! Minas Gerais! / Oh! Minas Gerais! / Quem te conhece / Não esquece jamais / Oh! Minas Gerais!”


 Sob as primeiras chuvas de abril


Há poucos dias eu dizia que as folhas luziam e reluziam sob a luz do sol de fim de estio. Agora acabei de ver as folhas também luzindo, mas sob as primeiras chuvas de abril. O verde lavado reluz alegrinho e as gotas retidas nas folhas verdinhas são pedrinhas de brilhante a tremeluzir. E fazem pensar.

Mais uma vez a constatação de que os opostos se igualam. Tanto o sol quanto a neve põem a vida a hibernar. Seja sob o solo crestado do sertão ou congelado onde neva, a vida fica adormecida e basta os primeiros chuviscos no chão esturricado ou os primeiros raios de sol sobre o chão gelado para a vida belamente acordar pujante.  

Aqui, na zona de meio-termo, ou seria do caminho do meio do taoismo? ou da moderação dos gregos? Aqui, que não neva nem tem sol esturricante, não chegamos a ver esse fenômeno, mas nem por isso deixamos de observar as sutilezas da natureza.

E as primeiras chuvas de abril se intensificam, pois afinal, abril, águas mil. Da beira do telhado desce a espessa cortina d’água. Uma leve fina névoa embaça o azul do céu e põe o brilho das folhas atrás de tule, compondo outra beleza no lugar.

E por falar em abril chuvas mil lá vem a lembrança da belíssima música “As cores de abril”, de Toquinho e Vinicius, uma das nossas odes à alegria, que há poucos dias circulou nas redes socias em forma de lindo vídeo. Um abril com cores e ares de anil, mundo aberto em flores pelas quais pássaros mil voam fazendo amor; um abril com canto gentil de bem-te-vi e com cores que não querem saber de dor; e em meio a tanta beleza, a natureza  transforma a vida em canção.

Fico pensando no dia da criação dessa música. Estariam os compositores no hemisfério norte onde a primavera é em abril? Ou teria sido por aqui mesmo, no outono, num abril atípico, quando em vez de chuvas havia cores, ares de anil, flores e pássaros?

E como pensamento puxa pensamento, no pensar num abril atípico chega também a surpresa de Trees, a amiga holandesa, diante do abril desse ano por lá, com tulipa na neve. Envia foto para comprovar. Como se não bastasse a estranheza de nevar na primavera, ela  conta que dez minutos  depois da neve cair fez-se tempo de verão. E concluiu dizendo, com o ditado deles: “April does whatever it likes to do”, ou seja “abril faz o que ele quer fazer”, sendo, portanto, imprevisível, ou simplesmente dono de sua vontade.

A chuva dá uma trégua para os verdes da vegetação se exibirem de banho tomado e roupa nova. Na mente ecoam a melodia e os versos  de Toquinho e Vinicius, sim “tudo é pura visão/ E a natureza transforma a vida em canção” E a gente se apaixona pela natureza, pela vida. Também de alma lavada, ao menos momentaneamente livre dos medos, das dores, das indignações deste tempo de trevas, a gente está pronta a seguir o conselho do poeta: “Vai e canta, meu irmão. / Ser feliz é viver morto de paixão”.



                                             NOSSA VIDA NÃO NOS PERTENCE

Por uma dessas sem razões da vida, no momento em que paro à janela a contemplar uma formação de nuvens branquinhas atrás dos lavados verdes que longamente se estendem por aqui,  me vem à cabeça a frase: “a vida é minha, faço com ela o que quiser”. Pensando melhor, não é tão sem razão assim, que essa frase aflora. Afinal muito tenho escutado ela nos últimos tempos, principalmente pelos que se recusam a tomar a vacina contra a covid 19 ou a respeitar as normas de proteção na pandemia. O sem razão, então, fica sendo tão só porque o cenário é belo e há uma sabiá em concerto acompanhada pela orquestra de mar e brisa, ou seja teria coisas mais agradáveis com que ocupar a atenção.

Mas, sabem como é a mente da gente, uma vez iniciada, a viagem prossegue. E a frase persiste: “a vida é minha e...” Será? A dúvida vem. Será mesmo que a nossa vida é nossa mesmo?  só nossa? e podemos dispor dela ao bel prazer? Basta pensar nas dores que uma vida que se acaba provocam nos entes queridos ou os reflexos que nossas ações produzem na sociedade, para concluir que não. A nossa vida não nos pertence, pelo menos, não só a nós mesmos. Se o nosso existir afeta os outros, então a nossa existência não é só coisa nossa e se é também de outrem, eticamente não temos direito de decidir sozinhos o que fazer com ela. Causamos mais sofrimentos, trabalheiras, custos e prejuízos aos outros e ao planeta do que podemos supor. Basta existir para provocar impactos.

Veja-se o caso da recusa da vacina e dos cuidados nesta pandemia. A primeira vista,  tomar  vacina, usar máscara, ir ou não a festas é uma mera questão pessoal.” Se ficar doente, problema meu”. Não mesmo. Se ficar doente, vai fazer familiares e amigos sofrerem com seu sofrimento ou morte, isso se não os contaminarem e matarem também. Vai sobrecarregar os profissionais da saúde e coveiros que já vem trabalhando sob exaustão, vai aumentar os custos dos hospitais, vai  exaurir um pouco mais os recursos da terra com o gasto de energia e de outros materiais usados nos medicamentos e equipamentos, necessários ao  tratamento médico. Vai impedir que outros doentes tratem de suas doenças por receio de serem contaminados. Vai contribui para que a pandemia se prolongue indefinidamente com todos os males físicos, psíquicos, econômicos, sociais que vem causando.

Diante disso a tão propalada liberdade e individualidade é posta em questão. Se olhado direito, o livre arbítrio é mera ilusão, de que nos valemos para alimentar nosso presunçoso egoísmo ou egocentrismo, para nos sentirmos poderosos, donos da Terra, autônomos, independentes, livres, para disfarçar a nossa indigência.  Num momento histórico de tão exacerbado individualismo como  o  que vivemos, é difícil encarar essa realidade. A satisfação pessoal está colocada acima de qualquer interesse coletivo, muito embora soframos as consequências do que atinge o coletivo, sendo nós próprios parte desse coletivo.  Colocamos a liberdade destituída da responsabilidade ética acima da fraternidade.

Contudo somos seres que precisam da autoafirmação dentro de um contexto de integração. Somos sistemas e subsistemas ao mesmo tempo, como tudo no cosmos. É difícil aceitar essa realidade da liberdade dentro de uma redoma, do individual limitado pelo bem comum. Entretanto a compreensão da nossa efetiva condição poderia resultar em bem maior. Em vez de continuar debatendo-se contra a vidraça poderíamos nos entregarmos à solidariedade, que nos assusta porque nos pega pelas asas, mas que nos põe fora para voar.

A tarde avança, as nuvens fazem e se desfazem e eu continuo refletindo, derivando para o devaneio. Penso que as coisas ficaríamos mais fáceis se em vez de conquistar, procurássemos nos harmonizar com as leis universais, entre elas, a principal, a lei do amor, a força de coesão universal que transforma o caos no cosmos. Com essa compreensão, harmonizados, veríamos as vantagens, e poríamos em prática, a cooperação, a solidariedade ainda que a custo de momentânea restrição da liberdade individual. É o que a atual pandemia parece conclamar: uni-vos seres humanos, ponham mais peso no prato da balança em que está a necessidade de integração, porque se houvesse solidariedade, se tivesse havido real colaboração de todos, a pandemia já teria passado e todos estaríamos livres para fazer o que quisessem sem medo, sem remorsos, felizes por celebrar a vida.

Sim, a pandemia veio lançar diretamente questões fundamentais: Como podemos ser felizes em meio a um mundo de infelicidades? Como podemos ser indiferentes as dores alheias, quando também sentimos dores? Cada um não é um outro para os outros? Não seria tempo de seguir a regra de ouro de fazer aos outros aquilo que deseja pra si. Não estaríamos no tempo de rever os valores, os modos de produção e de relação e se tratar de equilibrar o trinômio da revolucionária divisa. Liberdade, igualdade, Fraternidade, e não apenas fazer prevalecer um dos termos? Liberdade com responsabilidade e respeito ao outro, ao coletivo, para que haja igualdade de oportunidades conforme a regência da fraternidade, e se construa um mundo feliz, em que todas as vidas tenham igual valor e não  somente  algumas usurpadoras de privilégios.  

O dia começa se apagar atrás das nuvens, agora tangerinas, vagando sobre o céu genciana. A sabiá se calou, mas os violoncelos da orquestra marinha continuam entoando o adágio em surdina, enquanto o vento fazendo os coqueiros de harpa vai tangendo suas palhas que adernam lentamente. Já é hora de deixar de filosofar e ficar ao pé da natureza apenas como se deve estar segundo o poeta Fernando Pessoa, sem pensar em nada, pois, como ele também diz, “sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”.


                           

Um Ponto de Luz

 

 Na madrugada escura há um ponto de luz diante da janela aberta. Da minha cama posso vê-lo bem. Um ponto de luz único, muito brilhante, grande, muito grande, maior que os   demais astros vistos por nós a olho nu. Eu não sei se é uma estrela ou um planeta. Meus parcos conhecimentos de astronomia, malmente me permitem identificar as Três Marias (O Cinturão de Orion) e o Cruzeiro do Sul. Mas, isso não importa, mesmo porque seria tão só uma denominação inventada por alguém. Importa que é um ponto de luz, que solitariamente brilha, uma piscadela do universo, um aceno que me acorda às 4h da manhã, me põe, primeiramente a contemplar e depois a pensar, pensar, longamente pensar.

Se eu fosse ainda suficientemente criança, diria que esse ponto de luz é a minha estrela da boa sorte a me velar. É bom, muito bom crer nisso, pois que é confortante ter uma estrela a nos garantir boa sorte, como o é também ser zelado, ainda que por um pingo de luz no escuro da noite. Mas como não sou mais suficientemente criança, lembro que não posso chamá-la de minha. Outros insones, devem agora mesmo estar dizendo, minha estrela. Naturalmente,  ela é de cada um que a vê e admira, todavia não é de ninguém (tal qual a Tereza da Praia, da dupla Dick Farney e Lúcio Alves, mas música de Tom Jobim  e Billy Blanco)  e é de todos. Nisto a cientificar que não é preciso ter para se dispor, ou dito de outra maneira, é possível ter sem possuir. O que representa o aprendizado do desapego e da partilha. E lá vai o pontinho de luz passando lições da arte de viver.

O amanhecer se insinua no suave clarear do horizonte. E o ponto de luz, se torna ainda mais brilhante E eis que já o imagino como um farol a alertar para os perigos e a apontar o caminho seguro a seguir. Ter uma guiança em meio à acidentada escuridão oceânica da vida é também muito confortante. Mas não basta ter o mapa, é preciso saber como segui-lo. A luz ilumina a rota, mas não aplaca ventos nem amansa ondas. O caminho está traçado, mas a travessia é que são elas.  Ai que esse belo pontinho de luz com sedução e as esfíngicas piscadelas, conforta e inquieta ao mesmo tempo.  

Tento voltar a dormir, mas continuo a contemplar e refletir. E me indago: Do tal ponto de luz, a Terra seria vista tal qual eu o via?  Seria, então, um contato imediato de primeiro grau entre o planetinha azul e o astro não identificado? Mais uma coisa que não sei nem saberei. Mais uma constatação do tanto que não se pode saber. E eu que já quis saber tudo... E até acreditava que seria possível... Dura aprendizagem o da resignação ou da aceitação do cosmo como é, dos enigmas e mistérios, das impossibilidades, das limitações pessoais, da própria ignorância e pequenez.

Já disse em crônicas, e volto a repetir, que nada como a contemplação do céu para nos fazer ver a nossa real condição e dimensão no universo. Diante da imensa incógnita e infinitude do espaço sideral, das galáxias e dos sistemas estelares, a ínfima individualidade humana só não é nula, porque no cosmo, composto de sistemas e subsistemas interdependentes, nada é insignificante. Isto pode servir de algum consolo, mas deixa claro que não há  lugar para nenhuma presunção.  Sem dúvida, esse ponto de luz é mesmo confortante e inquietante, dubiamente dual, como quase tudo na vida.

A alba se alarga. As cores do amanhecer se espalham. Uma nuvem passa encobrindo o ponto de luz e quando se vai, o clarão do novo dia já havia a apagado a noite, assim como a noite havia apagado o dia anterior. A luz que revela, também oculta pelo excesso de claridade.  A escuridão que esconde, também realça a luz. Concluiu o  Ponto de Luz que havia na madrugada, ao desaparecer no clarão do sol .

 

08/02/2022


MARIPOSINHAS BRANCAS

Como eu disse certa feita, são várias, em diversidade e em quantidade, as inusitadas visitas que recebo e que suscitam admiração, alegrias, encantamentos, as vezes temores, longas reflexões e sempre rendem crônicas. E a coisa continua.  Há três dias estou com novos hóspedes em casa e não sei nada sobre eles. Nem sei se são eles ou elas. Uso o masculino apenas por norma gramatical que faz o ‘ele’ prevalecer até quando sujeito é de gênero indefinido ou nas abstrações. Herança dos tempos machista que perdura aqui e ali.

Mas voltemos aos meus misteriosos hóspedes. Umas sete criaturas pequeninas, mimosas, muito brancas, de alvura perfeita como as roupas lavadas antigamente com sabão em pó rinso, silenciosas, discretas, não causam nenhuma alteração na rotina da casa. Chegaram sem serem notados, se instalaram na cozinha, nas portas de vidro que dá para área de serviço, da geladeira e dos armários, onde permanecem imóveis até agora.  Somente, quando sem querer, esbarrei numa, houve sinal de vida a revelar que são seres alados e que, portanto, voam. Então descobri que eram minis mariposas.

Por aqui não faltam mariposas. Tem as grandes, escuras chamadas bruxas a que se atribuem malefícios e agouros, porque segundo a lenda são feiticeiras transformadas em borboleta e que o pó das suas asas cega.  São comuns as de tamanho médio de cores variadas, agora, dessas diminutas branquinhas, nunca tinha visto. Entre o fascínio e a curiosidade, chegou pertinho, tiro fotos, e vou pesquisar. Preciso conhecer meus hóspedes. De imediato, fico sabendo que os povos guajiros da Colômbia consideram a mariposa branca como espírito de um antepassado que vem ao mundo terreno visitar seus parentes e que por isso não se deve matar nenhuma quando entram em casa.

E novas descobertas faço. Descubro, por exemplo, que ao contrário do que se costuma acreditar as mariposas não voam em volta das lâmpadas porque são atraídas pela luz. Na verdade é mais um dos males que os humanos provocam na natureza com as artificialidades que criam para compensar suas carências. Por não termos luz própria como os vagalumes, as águas vivas, as estrelas e precisarmos dela para enxergar, inventamos as lâmpadas que além de apagarem as luzes das noites e até nos cegarem por encandeamento, confundem as tartarugas e outros animais noturnos como as mariposas que têm por característica a orientação transversal, ou seja, se orientam segundo a luz da lua.

Os insetos noturnos quando saem para caçar voam em uma certa direção com relação à lua de modo a poder retornar ao seu habitat. Mas, uma fonte luminosa na terra mais intensa que a luz da lua, acaba por confundi-los e os fazerem voar em círculos ao redor dessas lâmpadas, até morrerem ao encostar nelas e queimar as asas. E esse voejar fatal das mariposas serve de metáforas para músicas poesias e de inspiração para lendas. Assim, fazendo-se a comparação, diz-se que uma pessoa tomada pela paixão, não enxerga a verdadeira luz e acaba se perdendo na ilusão.

Também se faz analogia com aqueles que buscam a iluminação espiritual, que procuram Deus. Por ser um inseto que passa por várias etapas de transformação, simboliza o processo de espiritualização, que exige período de recolhimento, de introspecção de mudanças pessoais até a conquista da serenidade, libertando-se dos equívocos, das ilusões e atingindo o estado de graça ou da  bem-aventurança, tal qual a mariposa que se arrasta como lagarta, passa tempo isolada  no aperto do casulo, até conseguir com muito esforço criar e libertar as asas e, enfim, voar.

Entro no mundo da biologia e certifico-me da importância das mariposas na natureza, sendo elemento da dieta de diversos animais, além de ajudar no controle de plantas invasoras e na polinização. Descubro que elas têm espirotrombas, algo como a “língua-de-sogra”, brinquedo das festas infantis. Quando querem comer desenrola a língua para sugar o alimento e ao acabar a recolhe enrolando. Contudo há espécies com a Mariposa Atlas que não tem boca porque não precisa se alimentar. Durante a fase de lagarta, ela come muitas folhas, estocando boa parte para crescer e sobreviver como mariposa. E tem mais, algumas podem ficar imóveis por muito tempo, aguardando o chamado sexual ou até sentir cheiro de algo que lhe sirva de alimento, ou ainda por estar no fim da vida, já que elas vivem apenas alguns meses.

Sobretudo fico sabendo que as mariposas brancas também representam sorte e a prosperidade. Muitos consideram que elas têm ótimas energias e que sua presença em casa é sinal de boas notícias. Mera superstição, é claro, mas é muito bom acreditar que minhas lindas e misteriosas hóspedes vieram me trazer sorte, sempre oportuna, mais ainda nestes tempos cheios de riscos. E que venham, pois, as boas notícias, de que, como todos, tanto ando necessitada.