Poesias


A FLAUTA DO AMOLADOR DE TESOURAS I


Soa na bela clara manhã de primavera,

mas é nos recessos da alma que ressoa

a flauta de Pã do amolador de tesoura.

Soa deslocada no tempo e no espaço

nas ruas do moderno urbano condomínio,

mas é na campestre Arcádia que ecoa.

Sibila o vento soprando taquaris.

Canta Seringe – em caniço transformada –

a retribuir a perseguição sofrida,

a comover o sátiro perseguidor.

Toca Pã, tacos de taquara feitos flauta

(glória da ninfa fascinação dos mortais),

vencendo Apolo na justa musical.

Sobe o som e queda o campo em quietude.

Pastorzinhos cismam à beira dos regatos,

enquanto as ovelhas pastam nos verdes vales.

A vida vai, leve, leve, levando as eras,

Mas a voz de Seringe na boca de Pã,

agora soprada pelo amolador,

permanece ecoando no infinito,

a enlevar e enternecer quem escuta.

Segue o Amolador tocando a flauta.

Escassa melodia, sonorosa magia,

aciona a sensória memória atávica,

mexe, remexe nos confins dos corações.

Segue o Amolador no pregão chamando

tão só fregueses – garantia de cada dia –

sem atentar para o milagre que sucede:

dele ainda viver deste som antigo,

de ir espargindo, por onde vai passando,

inefáveis sensações que valem a vida



A FLAUTA DO AMOLADOR DE TESOURAS II


A flauta de Pã do amolador que passa

soa na bela clara manhã de quase primavera.

Soasse numa tarde chuvosa de inverno,

mormacenta de outono,

tórrida de verão,

entre os ventos de agosto,

soaria sempre numa bela clara manhã de primavera,

numa remota,

numa longínqua,

numa onírica

bela clara manhã de primavera.

O som da flauta do amolador que passa,

é pobre melodia, como quem toca.

Mas carregada de flores e sossegos

dos verdes vales salpicados do branco das ovelhas,

orlados de azuladas serras,

onde serpenteiam riachos,

e brotam fontes entre caniços.

Caniços que cantam ao vento como Seringe

para sátiros,

faunos,

ninfas.

Caniços que Pã transformou em flauta.

Flauta tocada pelo amolador que passa

numa bela clara manhã de quase primavera