Jornalismo Literário

No saveiro navega a alma da Bahia

Por Gilka Bandeira

Link da edição 8: http://www.youblisher.com/p/1452385-Revista-Pindorama-Ed-8/).

Após trilhar cerca de 2km por veredazinhas, atravessando o cascateado Rio da Levada, pisando nas pedras emersas, chegamos ao Porto da Pedra. E lá estavam eles, os majestosos Sombra da Lua e o Mensageiro do Destino, alheios à própria magnitude, serenos como os velhos sábios e as águas do Rio Guaí onde pousavam ainda de velas arriadas, sendo apetrechados. O nublado do dia acentuava a placidez do cenário. Pouco depois estávamos sobre o fabuloso tijupá, acompanhando o içamento das velas. O mestre e um marinheiro puxaram as cordas na roldana, erguendo a carangueja, aos poucos desfraldando as velas.

Velas enfunadas, o pavão das águas começou a se deslocar quase imperceptivelmente, saindo de mansinho devido a soalheira. Era preciso chamar o vento, mas faltava o assovio de Caymmi e o vento não veio. Não vindo, Mestre Jorge (Antônio Jorge de Jesus), 46 anos, teve de ir atrás dele a varejar. Havia chovido pouco antes de embarcamos e o céu permaneceu muito nublado, mas as nuvens escuras seguraram as chuvas durante toda a viagem, dando-nos direito até a um crepúsculo e, já na reta final, a um luar entre nuvens, fazendo com que literalmente viajássemos na sombra da lua.

Cercados por morros verdes e manguezais, a gente ia deslizando ao som do barulhinho d’água no costado da embarcação. Havia os escarlates guarás e alvas garças voando em bandos, ou solitárias sobre mourões, ou emergindo de mergulho com peixe no bico. O Mestre Jorge permanecia ao leme enquanto Geo e Josevaldo tiravam um cochilo sob o tijupá. Despertados ao anoitecer, acenderam o fogão de carvão e, passado um tempo, nos ofereceram aipim quentinho, que caiu bem para a fome que nascia e para esquentar o friozinho vindo com o relento. A paisagem continuava passando: a Ilha do Francês com Farol vermelho; a fazenda e as ruinas do Forte de Salamina...

Aura e alma - O Sombra da Lua seguia em longos ziguezagues à cata do vento. No escuro da noite, o silêncio mais acentuado, a gente sentia o mundo em harmonia, sentia a poesia da vida, amando mais o que já muito se amava. E pensava... Não estávamos num barco qualquer, mas numa embarcação exclusiva, ameaçada de extinção, que não existe em nenhuma outra parte do mundo. Estávamos num antigo sobrevivente saveiro de vela de içá com tijupá, também denominado de saveiro de farinha, ou saveiro de feira; um patrimônio cultural brasileiro tombado pelo Iphan, elemento integrante “da memória sentimental e afetiva da população, da paisagem, do imaginário”, conforme se lê no Parecer Técnico sobre o tombamento do Sombra da Lua.

E estando nele suavemente a deslizar no sossegado daquele ermo, era possível perceber a aura do saveiro formada pela sua sua beleza, parte da paisagem da Baía de Todos-os-Santos (BTS), pelos saberes dos carpinteiros, dos calafates, dos costuradores de velas, dos mestres e marinheiros conhecedores dos ventos, das correntezas, peritos em enfrentar ondas, tempestades, calmarias, em arrumar a carga, ou cozinhar a bordo. Aura que contém o heroísmo de João das Botas e demais combatentes na luta da Independência, que enfrentaram e venceram potentes naus com seus rústicos saveiros. Aura que emana do cotidiano da vida das sucessivas gerações nos recantos de todo mundão do Recôncavo, em seus festejos, procissões, regatas, passeios, mudanças, vaivéns de todo dia, leva e traz de noivas, de meninos doentes, até de defunto, de material de construção, dos produtos das roças, no exercício do ganha pão, abastecendo Salvador dependente do que o Recôncavo produzia. Aura que, portanto, reflete a alma da Bahia, fazendo emergir caras lembranças, algumas atávicas, a emocionar, a inspirar escritores, compositores, poetas, artistas plásticos.

Lida da Vida - Bordejando no Sombra da Lua, sentíamos o pulsar desta alma, podíamos até escutar mestre Memeu (Bartolomeu do Rosário, 73 anos) contar um aperreio. “Deu aguaceiro forte, eu estava ali do lado da capitania não aguentei sair, o saveiro batia no quebra-mar, batia e voltava, na última batida, arrombou. No que arrombou joguei a carga fora, mas era tarde, não adiantou, arriou, só ficou aquela pontinha de fora. Fiquemos (sic) eu e o rapaz na ponta do mastro das 11 da noite até seis e pouco da manhã”. Como era tempo de pouca sorte, a lancha que fez o resgaste foi primeiro a Mar Grande cumprir horário e na volta teve problema, ficando à deriva, até ser rebocada por um navio.

Ouvir Mestre Louro (Lourival de Almeida) do saveiro Feliz Ano Novo falar da ciência que se precisa pra conduzir um saveiro: “tem que ter cuidado, pois tem pedra, tem areia, tem lugar fundo, lugar raso, tem de conhecer tudo pra você não bater e se acabar, a linguagem do mar, os ventos, fazer manobra, se quebrar um negócio, saber como é que faz, tem de saber governar”. E depois de tudo isso, afirma que “para quem está acostumado é fácil, a gente maneja ele, faz com ele o que a gente quiser”. Mas não é tanto assim. Os mestres experientes manejam bem os saveiros, contudo o vento ainda dá as cartas.

Museu flutuante – Sabe-se que o saveiro tem este nome porque havia embarcação parecida em Portugal usada na pesca do sável, daí serem chamadas de saveleiro que, por corruptela, virou saveiro. No dizer de Roberto Bezerra, o Malaca, vice-presidente da Associação Viva Saveiro, “o saveiro não é só uma embarcação, tem todo um sistema em volta dele, aquilo é um museu flutuante tem cultura da China, da Índia, que os portugueses trouxeram”.

Os colonizadores precisavam trazer para Salvador o que era produzido no entorno da BTS e levar para o Recôncavo as coisas que as suas naus traziam da Europa. As caravelas requeriam lugar fundo pra chegar, daí o nascimento do saveiro, cuja primeira referência data de 1562. Necessitavam de uma embarcação que pegasse muita carga e, segundo Malaca, “o saveiro pega 15,8t, que nem um caminhão truck, são 300 sacos de farinha”; que fosse rápido, um saveiro anda sete ou oito nós; que calhasse pouco, ele navega com 60cm de água; que fosse muito resistente para aguentar tanto encalhe, desencalhe, carrega, descarrega porque, por falta de píer, carregava em seco. Com os sucessivos aperfeiçoamentos, foi adquirindo a feição peculiar, cuja principal singularidade, de acordo com o já citado Parecer Técnico, “está na curvatura da roda de proa, complementada pela presença dos frades nas duas laterais da proa”. Daí também a diversidade de saveiros em relação à função (tráfego, pescaria e de carga) e ao tipo de velas usadas.

A grande estrela é o saveiro de vela de içar com o alto mastro sem estais a exibir imensa vela latina quadrangular que meneando ao vento tanto seduz e faz Malaca suspirar: “uma beleza! tem o corpo de mulher, como diz Bel Borba”. Esta vela é içada junto com a carangueja (retranca), o que constitui mais uma particularidade. No saveiro a carangueja fica lá em cima, não embaixo como nos veleiros. Tem ainda uma vela menor, triangular, na proa, a bujarrona. Outro detalhe é o tijupá, cobertura sobre o porão para carga e abrigo dos saveiristas. Atualmente só existem três exemplares deles, o Sombra da Lua, o É da Vida e o Vendaval, que está arriado em Maragogipe. Eles têm 12m, mas há saveiros de 16m como o Rompe Nuve e o Ideal. Estes e os demais saveiros de vela de içar que sobraram, por questão de sobrevivência, tiraram o tijupá para carregar areia e pedra.

Os saveiros de pesca foram os primeiros a usar motor. Hoje, até os de vela de içar botaram motor de rabeta, “é feio, é barato faz uma zoada danada, mas eu entendo porque o cara tá carregando areia, faltou o vento, vai ficar esperando? Às vezes se está aqui e o vento ali, então você liga, dá uma andadinha e pega o vento”, explica Malaca, sendo ratificado pelo mestre Louro: “Motor botamos agora, porque os meninos não querem mais varejar, mas tendo vento a gente suspende, é só na suaera, mesmo porque a vela tem três carreira a mais que o motor”.

Paus e Panos – Recentemente, Ubiracy Portugal, o Bira, artista plástico de Jaguaripe, que faz réplicas em miniaturas de saveiros, fez um saveirinho de seis metros de vela de içar com tijupá pondo o nome de Mestre Carlito em homenagem ao seu afamado pai, para ser usado em passeios. Mas está cada vez mais difícil construí-los por falta de procura e pela dificuldade em se conseguir as madeiras apropriadas, sucupiru-açu para o mastro, jaqueira pra fazer braço e caverna, jacaí, jacaipeba, etc. “A grande mágica na construção de saveiro é que para cada peça da embarcação tem um tipo de madeira” - diz Malaca.

Os poucos estaleiros que restam vivem de reforma, como os de Mestre Dégo, em Maragogipe, e o de Mestre Nem, na Ilha de Maré, que ainda utilizam as técnicas tradicionais de construção naval. O graminho foi imprescindível por bom tempo para os cálculos da estrutura do saveiro, depois o conhecimento passou a ser transferido verbalmente. “Hoje, alguns ainda fazem os cálculos com o graminho, mas é muito mais fácil repetir o que já foi feito. É tudo na observação, mas não deixa de ser preciso, o mastro, se não me engano, é uma quilha e meia, é tudo equilíbrio, tanto que se tem um mastro de 16m sem estais, quem estaia o mastro é a própria vela” – diz Malaca.

Para o Mestre Carpinteiro Dégo (Fidelis da Conceição, 86 anos), “o graminho é o meio da lua. Não tem a lua? Nós divide (sic) ela. Da meia lua a gente tira o esquadro, armando a estrutura, depois é cintar, botar borda... É muita ciência” - explica. Ciência que ele domina desde os 16 anos quando se tornou oficial de carpintaria. “Ninguém ensina ninguém, mas comecei na oficina de Claudionor e com pouco eu já dominava”.

Orgulhoso do seu ofício, afirma que fez o saveiro Protegido de Santo Antônio, de 15t, em apenas 30 dias. “Os meninos que estão aí levam cinco meses para construir um saveiro. Cansei de preparar 12 peças num dia. Ia para um mato com dez homens a gente tirava 100 peças à base do machado, hoje vão com motosserra tiram quatro”. Mestre Dégo, que até os 70 anos carregava madeira nas costas, vai todos os dias ao seu estaleiro na Ilha do Galego, já não pega no pesado, mas controla os dois rapazes que trabalham lá.

Outra obra de arte são as velas, tão bem formatadas e costuradas à mão sem nenhuma ruga. A depender do tamanho da embarcação, são 80 ou 90m de pano grosso de algodão, com 1,5m de largura, “que é dobrado e cortado em seis partes e se vai costurando uma na outra alternando frente e verso”. Ensina Mestre Neto (Edivaldo do Rosário), dono do Rompe Nuve, que desde os 12 anos faz velas, tendo aprendido vendo o pai e avô fazendo. A arte começa na armação do molde: “Primeiro a gente tira o painel no mastro com corda amarrada na carangueja, amarra em baixo e em cima, suspende, marca, espicha no chão, sai cortando e emendando os pedaços do pano”.

Mestre Neto, que trabalha na sala de sua casa, confecciona qualquer tipo de vela e contente diz que todas as velas que aparecem na novela Velho Chico foram feitas por ele. Uma das suas marcas é a pintura feita com hidrax, “eu, painho e meu irmão pintamos sempre de azul”. Como linha de costura se usava cordão encerado com cera de abelha, “mas agora usamos náilon”, mas há saveiro, como o Sombra da Lua, que ainda tem vela costurada com cordão encerado.

Maus Ventos - Apesar do significado cultural, do valor histórico, das artes que reúne, da sedução, os saveiros estão em extinção. Dos 2 mil de outrora, restam cerca de 20. Segundo mestre Louro, “o saveiro já deu muito pela Bahia, hoje onde tem estrada o saveiro não tem carga. Muitos já se acabaram no porto daqui como o Vendaval que taí enchendo e vazando. A gente que é embarcadiço, amigo dos saveiristas, fica muito triste quando vê uma coisa dessas”. A lamentação da sorte do Vendaval é geral. Malaca diz ficar com a voz embargada quando fala nisto. “É um saveiro lindo, mas precisa de cem mil pra consertar e a Associação não tem condição”.

Muitos foram os fatores que determinaram o declínio do saveiro: construção de estradas, o fim das feiras com a criação dos supermercados e da Ceasa, o crescimento de Salvador para o norte, dificuldade em obter a madeira. Antes a cidade era na borda da Baía, tendo feira com cais em toda parte, e muitas vezes eles vendiam dentro do saveiro mesmo. Mestre Jorge conta que pegava farinha em Capanema. “Antes a farinha vinha da roça para o cais em lombo de animal, a gente botava nos saveiros e levava para as feiras. Hoje o caminhão pega na porta da casa de farinha e entrega no local do consumo”. Quando terminou a farinha, ele começou a transportar a louça de Maragogipinho para a Feira de São Joaquim, “mas agora fecharam o porto para reforma, dizendo que era apenas por um ano e já vai fazer quatro. O pessoal de Maragogipinho está esperando por nós, porque o frete do caminhão sai muito caro e há muita quebra das louças”. (Matéria na edição 6 da Revista Pindorama).

Sem a feira, o Sombra da Lua e o É da vida, os dois que fazem o transporte da cerâmica de Maragogipinho, estão parados, vez em quando fazendo passeios. O Mestre Jorge se vira pescando e consertando canoas e o Mestre Carlinhos (Carlos Antonio Ramos), do É da Vida, tem a aposentadoria. Os saveiros de Coqueiros vivem do transporte de areia para Ilhas vizinhas. Por enquanto está dando, mas vai acabar, anuncia Mestre Louro e “quando terminar não vai ter carga pra lugar nenhum, vai ficar tudo amarrado aí”. Uma alternativa seria o transporte de outras mercadorias para as ilhas, contudo, diz Mestre Neto, “agora eles lá inventaram as balsas e o já pequeno espaço dos saveiros está sendo tomado por elas”. Pesaroso acrescenta: “Vai ser triste ficar sem saveiro, é a metade da pessoa que se apagou”.

O Mestre Carlinhos declara: “Acabar não vai, agradeça à Viva Saveiro. Teve uma fase horrível, eu pensei de acabar mesmo, mas com Seu Pedro Bocca, Malaca este pessoal aí, a coisa mudou”. E Mestre Jorge confirma: “Só não vai ter fim graças à Viva Saveiro, porque não tem mais nada pra fazer de saveiro”. No entanto, Malaca crê não poder evitar o desaparecimento dos saveiros. “Tudo acaba, o concorde acabou, o que não pode acabar é a chama, o saber o que foi o saveiro, reconhecer como algo importante e guardar a memória”. Para ele, só há uma maneira, ter frete. “O primeiro caminho é a retomada do transporte da louça”.

Frete e Turismo – Uma saída para a conservação dos saveiros seria os passeios turísticos e alguns se encontram preparados, dispondo de sanitário, chuveirinho, placa solar para bomba d’água e iluminação, e até motor. A BTS é um dos melhores lugares do mundo para se navegar; tem 56 ilhas, inúmeros recantos paradisíacos, uma embarcação única no mundo com emblemática carga cultural. Potencial não falta. “Se o saveiro fosse de Paris, se navegasse no Sena, seria a oitava maravilha” diz Malaca, e deixa uma pergunta para reflexão: “O que é melhor, andar de saveiro ou naquelas gôndolas venezianas a 100 dólares?” Muitos roteiros poderiam ser criados e não necessariamente partindo de Salvador.

No entanto, como declara Mestre Jorge, “está difícil viver de turismo. No ano passado fizemos uns dez passeios, este ano vamos fazer o terceiro agora”. Para Malaca, a principal dificuldade é a própria característica deste tipo de turismo. “As pessoas não têm cultura para entender o que é um saveiro. Para a maioria é apenas uma embarcação velha. Quem valorizava era o pessoal da Regata Internacional de Veleiro que vinha pra cá, vi gente chorando de emoção no leme do Sombra da Lua.” E ressalta: “O passeio do saveiro é para um público específico”.

Com a volta da Feira de São Joaquim é possível ter saveiro em Salvador à disposição para passeios nos fins de semana. Há quem pense que o que falta é organização e divulgação. Para Carlos Junior, filho do Mestre Carlinhos, devia haver a mesma divulgação que existe com as lanchas e escunas no Terminal Marítimo. “Uma vez chegamos em Cachoeira, tinha um pessoal que disse que queria ter ido de saveiro, mas como não encontraram informação foram pela estrada. Acho que os saveiros podem se alimentar deles próprio. Quando chega um saveiro lá no Mercado Modelo, todo mundo tira foto, perguntam como é pra fazer um passeio”.

Já Cau (Antônio Carlos) filho de Mestre Louro, presidente da Associação de Saveiros de Vela de Içar da Bahia, acha que o turismo regular depende de apoio do poder público. “Seria ótimo fazer passeios turísticos na Baía do Iguape e por toda a BTS”. A solução parece estar na combinação do transporte da carga, planejamento de roteiros, apoio do poder público e divulgação.

Com esperança, terminamos a nossa viagem de seis horas no saveiro patrimônio nacional, o Sombra da Lua, deslizando no rio Guaí entre exuberante paisagem e sossego precioso pra nunca mais esquecer. Para coroar, chegamos ao Porto de São Roque do Paraguaçu sobre a esteira do luar ainda que vacilante como o destino incerto do saveiro


Mandioca, o divino Pão do Brasil

Por Gilka Bandeira

http://www.youblisher.com/p/1533710-Revista-Pindorama-Ed-9

Há muitas e muitas eras, tantas que o tempo já comeu, conta-se que numa aldeia Tupi nasceu uma indiazinha bem diferente dos demais curumins, parecia esconder um mistério. Além de ser branquinha, logo andou e falou, comia e bebia pouco, mas vivia sorrindo, sendo a alegria da tribo. Um dia, Mani, este o nome que lhe deram, morreu sem ficar doente e sem sofrer. Quem sofreu foi os que gostavam muito dela. Mani foi enterrada dentro da própria oca e todos os dias sua mãe e os demais regava o local com água e lágrimas.

Sobre o túmulo nasceu uma plantinha desconhecida. Passadas algumas luas, a terra rachou ao redor da planta. Pensando que era a menina que estava voltando à vida, os índios cavaram, se deparando com as raízes da cor do povo indígena por fora e branquinha como Mani por dentro. Acreditando ser um presente de Tupã, cozinharam e comeram a raiz. Como brotara dentro da oca de Mani, a batizaram de Manioca, que virou mandioca, chamada de o "pão da terra" pelo padre José de Anchieta e de a "rainha do Brasil" por Luís da Câmara Cascudo.

Farinha de Pau – A mandioca (Manihot esculent) é genuinamente brasileira, substância cultural da identidade nacional, tendo propiciado a subsistência dos nativos e dos que chegaram para explorar a terra e formar o povo brasileiro, sendo elemento de socialização, sobretudo nas casas de farinha. A maioria dos estudiosos acha que ela teria nascido no centro do Brasil e daí sido espalhada para o resto do país e do mundo. Fantástica foi a domesticação da planta pelos indígenas, a ponto de driblar o altamente tóxico ácido cianídrico.

Base alimentar dos indígenas, a mandioca chamou atenção dos homens brancos, merecendo registro já na Carta de Pero Vaz de Caminha: “Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito”. Adotada pelos que chegaram, serviu também de alimentação para os escravos, desbravadores e navegantes. E ainda hoje continua sendo indispensável “porque brasileiro, e principalmente baiano, não passa sem farinha”, como frisou Bartolomeu Negreiros, sitiante do Baixão de Guaí (Maragogipe), que dispõe de uma casa de farinha artesanal.

Não há por aqui quem dispense a boa farinha de pau, como era também conhecida pelos antigos. Apesar de toda modernização, as casas de farinha resistem espalhadas pelo sertão e por quase todo o Recôncavo Baiano. São construções rudimentares, quase só pilares e telhado, abrigando apetrechos rústicos feitos de madeira e forno a lenha, embora algumas já sejam parcialmente mecanizadas como a da fazenda Copioba Mirim, em Nazaré, cuidada por Marco de Santana, que possui serrilha, moinhos e prensas motorizadas.

Estas casas têm o signo da nossa ancestralidade, têm histórias, têm vidas dos que ignoradamente nos propiciam os variados beijus e, claro, a mágica farinha torradinha, que só não frequenta muito os restaurantes grã-finos por ser tupiniquim, pois como diz a canção de Juraildes da Cruz, “se farinha fosse americana/ mandioca importada/ banquete de bacana/ era farinhada”. Mas continua sendo o maná da deusa Mani, indispensável nas feijoadas, moquecas, sarapatéis, quiabadas, xinxins, ensopados, no medicinal mingau de cachorro, nos pirões dos cozidos e escaldados; nos angus dos doentes; nas farofas de manteiga, d’água, de dendê, no tutu e feijão tropeiro e até servir de tema para desusados serões.

Farinha em Serão – Bom ficar à mesa após jantar a escutar Maria Lúcia Araújo, em reminiscência, revelar saberes sobre a fabricação de farinha. “Se a mandioca era muita, ia da roça para a casa de farinha dentro do jacá. Se pouca, era levada na cabeça mesmo, umas ajudando as outras na hora de passar por debaixo dos arames das cercas”. Com linguajar próprio ela descreve as etapas do fabrico de farinha numa roça em Anguera, onde nasceu e se criou. “O trabalho de raspar é mais das mulheres. O meu cunhado caçava lenha para o forno.” Após raspada, as raízes eram sevadas para virar massa sendo enfiada no rudicho, que era movido com uma roda empurrada por duas pessoas. “A gente pegava esta massa e colocava para espremer: uma camada de pindoba, outra de massa, até encher outro cocho que era então tampado com grossa madeira, punha um peso sobre a tampa, apertava com corda para prensar”.

Dali a massa seguia para uma urupemba grande e após sessada era zanzulada no forno. Com ajuda das paletas e rodos, a farinha era jogada para cima, juntada, espalhada, mexida primeiro numa chapa do forno para desencaroçar e secar, depois indo para segunda chapa até ficar torradinha. “Não pode botar muita massa de uma vez. Vai zanzulando aos poucos”, ensina Lúcia, salientando que a farinha mais fina e mais seca, a melhor, depende da habilidade de quem faz: “quem tem mão leve faz farinha mais fina, já quem tem mão pesada força a raiz no rudicho, deixa passar pedaços maiores”. A qualidade também depende da fase da colheita, “quando colhida molhada fica mais difícil, na lua crescente rendia mais.

Na Casa de Farinha – Bom também foi passar uma manhã na casa de farinha da Fazenda Mercantil, em Nazaré, acompanhando o lufa-lufa, vendo ao vivo as descrições de Lúcia, verificando as diferenças existentes de uma região para outra a começar pelos nomes: o jacá de Anguera é o panacum de Nazaré e Guaí; rudicho é serrilha; crueira é caroço e zanzular é zazar. Se o rudicho era movido manualmente, a serrilha funcionava a motor. Enquanto na terra de Lúcia se planta as mandiocas Lagoana, Muturi (brancas) que dão raízes maiores e a Roché (mais escura) que engrossa, mas tem as raízes menores, no Recôncavo se cultiva os tipos Pratina, Corrente e Cigana. As diferenças não param por aí, havendo também distinção no modo de fazer. Mas num ponto uns e outros concordam: o melhor de tudo, depois da trabalheira toda, é a hora de fazer o beiju. Tanto que, conta Edmundo Cardoso, administrador da casa de farinha de dona Carmelita, “na hora do beiju fica cheio de gente aí”.

As casas de farinha, embora pertencente a uma fazenda, são compartilhadas por várias famílias no sistema de meia. Dona Carmelita, uma senhora de 86 anos — que ainda seva, peneira e zaza — comprou a casa de farinha há 49 anos. “Quando cheguei aqui era tudo manual, a moenda ainda movida por bois”. Nascida na fazenda Copioba Açu, aprendeu a fazer farinha com pai e mãe. “Já pelejei muito aqui, perdi noites fazendo farinha e beijus”. E na dita casa de farinha, cercada por plantação de cacau, mandioca, bananeiras, quiabo, mangueiras, jaqueiras, estavam 11 pessoas, marido, mulher, irmãos sobrinhos, tias, galinhas indo pra cá e pra lá, cachorros aos pés das donas.

A mandioca fora arrancada e trazida dentro dos panacuns presos na cangalha do burro na véspera, logo raspada, sevada e colocada na prensa. Agora, enquanto um botava lenha no fogo e outro punha carne para assar, alguns zazavam a massa no grande aguidá de barro sobre o forno. “É a parte mais cansativa, é preciso ter braço” – diz Pauleane de Jesus, mais conhecida como Daiana. Ao lado, noutro aguidá, a massa já seca e desembolada era torrada, sendo também esfregada com rodo e ajuntada com a vassoura feita do cacho do dendê. Outras pessoas se ocupavam de sessar a farinha torrada, passando por duas peneiras pra ficar bem fina e garantir a qualidade da famosa Copioba, que em seguida era medida nos litros de madeira e colocadas no saco. Os resíduos da peneira sendo reservados para os animais. Estando a farinha adiantada, começaram os preparativos para os beijus. Quando tem muita gente há revezamento nas atividades e muita coisa é feita ao mesmo tempo.

E o trabalho prosseguia de modo descontraído em meio a muita conversa. Dona Carmelita a recordar do tempo em que ela pelejava pra valer na casa de farinha. “Acordava quatro horas da manhã, às vezes dava meia noite e ainda estava passando massa na peneira. E quando não havia a serrilha, sevava na peneira mesmo, esfregando as raízes e era coisa demorada”. Lembrava também que “vinha com cesto na cabeça com panelas e temperos para fazer comida aqui mesmo enquanto trabalhava”. Por aí se vê que casa de farinha é um espaço de convivência onde se peleja muito, mas também se diverte, como salienta Daiane, rindo: “O pessoal mexendo a farinha, a gente contando casos, cantando rodas. O quê? A gente chegando a beber 3 a 4 litros, cachaça do alambique da região”.

A Arte do Beiju – Haviam colocado parte da massa da mandioca espremida de molho num outro cocho de tronco de jaqueira cavado. Agora, escorrida a água, a goma que ficará era secada com um pouco da farinha quente esfregada sobre ela. Revirada e amassada, a goma seca ia sendo sessada na urupemba, ficando pronta para virar beiju. Outra parte da massa, sem extração da goma, ia virar o beiju de farinha, ou beiju massa. Enquanto alguém descascava coco e ralava na serrilha, outro temperava a massa com sal, açúcar e punha um punhado, suficiente pra formar camada fininha, num aguidá, espalhando e formando um grande círculo. Quando as beiradinhas começavam a se soltar da chapa, aquela grande roda delicada era virada sem quebrar. Então, com uma faca, eram feitas marcas para que depois de torrados pudessem ser quebrados em forma de losangos.

Intercalando-se com os beijus de farinha, eram feitos os de goma. Do mesmo jeito se colocava camada fininha da goma sessada sobre o aguidá, formando um retângulo comprido, polvilhando sobre ele o açúcar e em seguida o coco ralado sem ser espremido. Dobrava-se as partes laterais com as pontas e também usando uma faca se cortava os losangos recheados que acabavam de ser torrados na outra boca do forno. Malmente os beijus principiaram a ser feitos, começou a aparecer gente, como Edmundo havia previsto.

Já uma menina voltava do quintal com folhas de bananeira, que tiradas do talo serviam para enrolar o bolo, ou beiju de folha, cuja massa Daiane havia preparado com aipim ralado, ovo, açúcar, leite de coco, para ser assado também nos aguidás. Daí a pouco se provava a farinha torradinha e quentinha e os beijus prontos. Enquanto isso, Edmundo explicava a diferença entre a farinha copioba e a comum: “A copioba é de fabricação artesanal, é mais fina, mais torrada, mais quentinha. A comum é de fabricação motorizada, é amarela, botam produto pra dar cor, fica mais grossa e menos torrada”.

E Leandro Oliveira salientava: “Aqui fazemos a farinha tradicional, a copioba. Como tem gente que gosta dela bem fininha, a gente passa por várias peneiras, para ficar mais apurada”. E ensina: “Para sentir mesmo a qualidade da farinha tem de pegar na ponta do dedo e sentir o croc-croc”. Melhor ainda se jogado um punhado na boca, como ainda se faz nas feiras livres. De um lugar para outro, neste grande Brasil, as farinhas mudam e esta diversidade aumenta o seu significado cultural. No Recôncavo isto é reforçado ao se vincular à outra grandiosa tradição, a dos saveiros, como atestam as lembranças de Edmundo: “Hoje os sacos de farinha são levados para feira de carro ou caminhão, mas antes iam de saveiro. Eram mais de 60 saveiros no cais do porto de Nazaré, tinha o Vendaval, o Vim te Ver, um montão”.

A Divina Mani - Eis que os beijus de folhas também ficaram prontos, delícia que fazia pensar na divina Mani, ou mandioca, maniva, macaxeira, aipim, castelinha, macamba. No meio desta variedade de nomes, o importante é distinguir a mandioca braba da mansa, ou doce, ou aipim. A primeira sendo venenosa devido a concentração de cianídrico. Tanto a braba quanto a mansa contém o ácido, porém no aipim encontra-se apenas nas folhas e as raízes podem ser comidas, já na mandioca se estende nas raízes tornando-as altamente tóxicas. “A mandioca cozida perde um pouco do veneno, mas ainda assim embebeda” - fala Lúcia por experiência própria. O problema é que as plantas se parecem. Há quem afirme que apenas teste de laboratório pode dar segurança. Mas os que labutam com elas parecem não ter dúvidas. Lúcia afirma que as plantas têm diferenças sim, tanto nas folhas e caules quanto nas raízes: “No aipim a casca é grossa e a gente corta e tira inteira, descasca. Na mandioca a casca é ‘fina e só sai raspadas”. Para Leandro “não tem erro”, diz com firmeza: “Se pegar uma mandioca roxa e um aipim roxo não sabe a diferença. Aí o que é que você faz? Toca a língua e vai saber distinguir. A mandioca tem sabor amargo”. A toxidade é tanta que a manipueira (caldo da mandioca) polui o solo e as águas, podendo matar na hora um animal que dela beber. Contudo já existem sistema de aproveitamento da manipueira como adubo, vinagre e sabão.

O cultivo da mandioca se destaca pelas facilidades que reúne: é de fácil propagação, tolera bem as longas estiagens, rende satisfatoriamente até em solos de baixa fertilidade, dispensam insumos modernos, além de ser resistentes a pragas e doenças. A mandioca é plantada o ano todo, sendo ideal pra colher com dois anos. No Recôncavo, o cultivo da mandioca é típico da agricultura familiar, de grande importância econômica e social para as famílias menos favorecidas. No Baixão de Guaí, só num pequeno trecho vê-se cinco casas de farinha. Praticamente cada sitio tem a sua, fazendo farinhas e beijus para consumo próprio, como no sitio de Bartolomeu Negreiros, onde cultivam de tudo um pouco (cana, milho, banana, laranja, aipim, mandioca) para consumo da família, tendo ainda uma vaquinha para ter o leite e galinhas alimentadas com o milho ali produzido. Praticamente só vendem o aipim.

Bartolomeu lembra que antes, quando havia mais mandioca, fabricavam farinha pra vender no mercado da feira de Maragogipe, “mas a feira acabou e como não tinham onde vender, o pessoal foi deixando de plantar”. Ao que parece, o fim das feiras não apenas afetou os saveiros, também os pequenos agricultores do Recôncavo diminuíram a produção inclusive da mandioca.

Saborosa Versatilidade - Nem só de farinha e beijus vive a mandioca. Além da farinha de mesa, que já oferece variação de usos, tem a farinha de tapioca utilizada em cuscuz, bolo de tapioca, mingau, bolinho de estudantes, sendo também gostosa misturada com coco e açúcar. Há a goma ou fécula, ou polvilho doce e o polvilho azedo resultando em beiju, pão de queijo, biscoito, e insumo para indústrias diversas. Há a puba ou carimã, feita das raízes fermentadas que viram pamonhas, beijus de folha, bolos, mingau, cuscuz. Há a maniçoba, feita das folhas num longo processo alquímico que dura dias para extração do venenoso ácido e mais muitas horas de cozimento com carnes de feijoada para enfim poder ser degustado como um maná. Isto só na Bahia, porque por aí a fora a versatilidade se infinitiza e sem falar no caium e giroba preparados pelos indígenas.

Depois de tanto escrever e ler sobre as delicias que a pequena Mani legou, urge ir atrás de uma pamonha de carimã, ou de um prato de maniçoba ou bolinho de estudante, ou de uma farofinha feita com a fina, quentinha e crocante farinha copioba para acompanhar qualquer coisa, que isso é o de menos diante da preciosidade tupininquim.




Maragogipinho: um Brasil modelado em barro

Por Gilka Bandeira

(Versão online: http://www.youblisher.com/p/1317927-Revista-Pindorama-Ed-6/).

A tradicional cerâmica de Maragogipinho, no Recôncavo Baiano, é uma das mais emblemáticas expressões culturais brasileiras, remontando ao início da formação da identidade nacional. São séculos de história forjados no barro, numa atividade viva e pungente, mas que corre o risco de desaparecer.

No início da tarde quente de verão, em torno da secular igreja azul e branca de Nossa Senhora dos Navegantes e seu belo coreto maltratado, estende-se a aldeia em modorra. Sentados nos passeios das casas, grupos de jovens ou de mulheres em lero-lero gozam da sombra. Debaixo das árvores uma roda de dominó. No rio, discretamente, canoas e barcos fazem manobras para sair ou encostar ao cais. Na ponta do ancoradouro três pescadores parecem estar com sorte. Um cachorro marrom atravessa a rua sem carros. O cheiro da castanha sendo assada em algum quintal rescende nas labirínticas vielas entre ocas das olarias. Na pracinha, apenas uns quatro carros de visitantes que ainda almoçam no restaurante à beira do mangue, observando ou sendo observados por caranguejos e aratus, que ainda resistem ao triste lixo que vai crescendo nas margens do manguezal. A vida corre mansa em Maragogipinho, mansidão que se impregna ao barro, dando um toque especial às cerâmicas ali produzidas.

Maragogipinho está localizado no município de Aratuípe, Recôncavo Sul da Bahia, vizinho a Jaguaripe, a 225 km de Salvador, no lugar do antigo aldeamento de Santo Antônio, criado pelos jesuítas no século XVI para catequese dos índios e oposição à tribo dos Aimorés, do que, até hoje conserva muitos traços no modo de viver simples e aprazível, na configuração do espaço, no tipo de construção e no processo produtivo. Até hoje as olarias são autênticas ocas indígenas com estrutura de pau-a-pique totalmente cobertas de palhas, o que favorece a ventilação e iluminação necessárias à secagem das peças de barro. As pinturas em tauá e tabatinga bem como os caxixis (peças miúdas feitas à mão) continuam sendo confeccionados à moda indígena e, mesmo o torno, usado na confecção de quase toda cerâmica local, é herança lusitana da mesma época da criação do aldeamento.

Substância Antropológica – Da mesma forma, o “saber fazer” é legado passado de pai para filho, de mãe para filha, geração após geração. A maioria dos oleiros aprendem a fazer cerâmica ainda criança, brincando nas olarias, observando os mais velhos. Foi assim com Elísio Nazaré Almeida, Seu Nené, 76 anos, um dos mais experientes oleiros, que aprendeu com os avôs e tios, no dizer deles, “com o nascer dos dentes”. E este ensino normalmente dá-se acompanhado das observações e das histórias conversadas durante o trabalho. O aprendizado, abrangendo todas as etapas de produção, inclui apanhadores do barro, amassadores do barro, mestre oleiro, pintoras, brunideiras, forneiros, que nos seus fazeres vão pondo sonhos, anseios, habilidades pessoais e transmitindo a identidade coletiva.

O antigo povoado tupinambá se tornou o maior centro de produção artesanal da Bahia — ou da América do Sul, como defendem alguns — tendo peças em museus e mais de 40 mil obras espalhadas pelo mundo afora, vendidas em lojas de renome. Em 2004, a ONU conferiu Menção Honrosa ao boi-bilha, peça que é uma junção da figura do boi nordestino com a bilha de origem portuguesa. A produção chega a cerca de 18 mil peças por mês, sendo vendidas sobretudo na Feira de São Joaquim, e também em São Paulo, Rio de janeiro, Goiás, Santa Catarina, Ceará, Paraná, Distrito Federal, e nas próprias olarias. Os objetos apresentam influências indígena, africana e portuguesa em suas formas e variam de tamanho indo de 2cm a mais de 1,50m de altura. Maragogipinho vive da cerâmica que produz, com maior parte da sua população envolvida na produção artesanal. Os potes, as talhas, os porrões, os quartinhãos, as talhinhas, as bilhas, as panelas, as moringas, pratos, luminárias, esculturas sacras, enfim as 5 mil peças (conforme catalogação realizada em 1995) ali produzidas, carregam em si muito da brasilidade.

Não é só o lugarejo que está nelas, mas os primórdios da nacionalidade brasileira, já que foi ali introduzida no começo da colonização, quando também teve início a miscigenação que deu origem ao povo brasileiro. Além de ter se modelado sobre uma das mais importante expressões culturais indígenas que se conservaram. Portanto, quando se compra uma peça qualquer de Maragogipinho não se adquire apenas um objeto utilitário ou decorativo, mas sim uma substância antropológica, que além de se constituir em obra única feita por mãos humildes que se projetam no que fazem, leva-se os saberes, a história, a alma de um povo.

Impressão Digital Ameaçada – A cerâmica de Maragogipinho tem características exclusivas que a torna identificável em qualquer parte do mundo, constituindo a impressão digital da comunidade. O principal indicativo é “o desenho de flores, folhas e traços fluidos em forma de chicote, com o branco da tabatinga sobre o vermelho do tauá, pintados com um pincel confeccionado do pêlo das costas de gato e presos na tala de coqueiro” - segundo dados de catálogo do blog do Museu do Barro - o museu vivo no fortim dos Emboabas. Também aponta outros elementos originais e indicadores da cerâmica de Maragogipinho: o processo de produção em que predomina o torno como principal instrumento de trabalho, o sistema de queima, o brunimento. “A queima das peças grandes é feita em forno tipo capela, com 3m de altura, coberto por uma abóboda e dura 24 horas. As peças menores são queimadas no forno tipo caieira, consome pouca lenha e dura 12 horas. O brunimento ou brunição, consiste em alisar as peças no sentido horizontal apoiadas no colo após a aplicação do tauá (vermelho) e utilizando um calhau (pedras de quartzo)”.

Entretanto, já se percebem mudanças significativas. “Peças que eram feitas antigamente hoje não são mais”. Afirma Seu Nené e dá como exemplo o chamado caco de laranja, utilizado pelos produtores de laranja para evitar a ação das formigas nas laranjeiras. “Fazíamos mais de duas mil peças por mês nos tempos áureos, tudo fornecido para a cidade de Alagoinhas, que era conhecida como a cidade da laranja”. Diversos são os fatores que ameaçam a impressão digital da cerâmica de Maragogipinho. Alguns se devem, em parte, à iniciativa própria dos oleiros tornados artistas, como o caso do santeiro Rosalvo Santana, que buscam novas formas e novas técnicas, como observa Marijose Pinto Santos, presidente da Associação de Auxílio Mútuo dos Oleiros de Maragogipinho: “O pessoal está sempre inventando coisa nova, mas que fale com nossa realidade”. Contudo, ocorre imposição externa por causa das encomendas que recebem de particulares, de decoradores, de lojas de venda de artesanato ou de decoração.

Segundo Seu Nené, a procura pelas peças pintadas com tabatinga tem diminuído. Mas também por comodidade, conforme Marijose deixa transparecer ao dizer que a pintura tradicional é mais trabalhosa e demorada. “Com tabatinga, a pintura é feita na peça apenas seca, depois tem de colocar a peça pra secar novamente para em seguida ir ao forno. Com a tinta acrílica ou esmalte, a pintura é feita na peça queimada e seca rápido, na mesma hora. Assim, tem muita gente trocando a tabatinga pela tinta industrial. Também estão trocando o tauá por ocre de ferro pronto, pela facilidade”. No entanto, o efeito produzido é totalmente diferente. Além disso, ressalta Marijose, “os jovens já não estão tão interessados em aprender, penso que devido ao trabalho em si, cada passo a passo é complicado”.

Porquinhos e Carrapicho – Para o renomado Rosalvo Santeiro, 50 anos, outro problema foi a chegada dos porquinhos: “Muita gente não procurou sentar no torno e aprender. Aprenderam a fazer o corpo do porquinho e ficam só nisso. Como os mestres que sabem fazer as tradicionais vão ficando doentes, morrendo, tá arriscado de essa tradição acabar”. Por sua vez, Valter Fernando Bonfim, 42 anos, levanta um problema, talvez ainda mais sério: a vinda da cerâmica de Carrapicho, Sergipe. “Chega o caminhão e para na praça, trazendo cerâmica deles pra vender aqui. Eles usam barro salitroso sem queimar e por isso têm de usar pintura com tinta esmalte e verniz, senão se desmancha. Aí vem gente procurar as peças deles nas nossas olarias, mas a gente aqui não compra nem faz a cerâmica deles. Vêm pra atrapalhar. Não tem como dizer para eles não venderem aqui, o mundo é para todos, mas nos atrapalha. Somente os que são apenas vendedores (lojistas) compram peças de fora para vender aqui. Os oleiros daqui não compram, não vendem e nem fazem igual”.

Todos os entrevistados se mostraram indignados com esta intromissão. Seu Elísio, por exemplo, disse: “Cada qual no seu cada qual. Não sou contra quem faz, mas contra quem compra esta cerâmica para revender aqui”. Junto a isto, vem mais fator descaracterizante, as construções de lojas fora do padrão das olarias, alterando a configuração do povoado e, sem compromisso com a produção e tradição local, vendem mais peças de fora. Os artesãos também se ressentem do fechamento do Instituto Mauá, que só adquiria produtos tradicionais.

Outra queixa é a falta do saveiro para transporte das peças. Como a Feira de São Joaquim está em reforma, os saveiros não têm como aportar lá e as mercadorias vão de caminhão, mas o frete é bem mais caro. Um só saveiro levava a carga de três caminhões. Além disso, no caminhão as peças se quebram em maior quantidade. Valter ainda se refere à falta da maior valorização de Maragogipinho. “A Feira de Caxixis aparece como atração de Nazaré, mas na verdade é Feira de Caxixis de Maragogipinho realizada em Nazaré. Lá eles nem têm olarias, não têm caxixi”. Salientando também a conveniência em incrementar o turismo: “É preciso trazer o turista para aqui. Agora já vai ter boa pousada, o lugar é bonito, tem os barcos para passeios com vários roteiros: Jaguaripe, Cacha-Pregos, Ponte do Funil, Manguezal, o pantanal nosso, etc”.

Contudo, os artesãos se sentem orgulhosos da sua atividade e de Maragogipinho. “Me sinto muito bem. Ave Maria! Este lugar é maravilhoso, é lugar onde sustento a família. Não dá pra ficar rico, mas dá pra viver e depois tem o prazer. Sinto alegria de mostrar pra quem chega. Já teve muitos turistas, mas agora tem menos com a crise, mas também a estrada de acesso está acabada os homens não cuidam” - afirmou Valter. E Emanuela, uma das três que pintavam vasos com tauá enquanto Sr. Elisio trabalhava no torno, completou: “Tenho muito orgulho, porque o trabalho não é fácil e aqui na Bahia é o único lugar onde todo mundo sobrevive do artesanato. Já se nasce com o dom”.


Verde que te quero verde” sem veneno

Por Gilka Bandeira

www.revistapindorama.com

De manhã cedinho lá vão os homens e mulheres se espalhando nas plantações. Eles vão “ver o dia crescer entre o chão e o céu/ o aroma dos verdes campos ir sendo orvalho na alta lua”, como a atender o convite dos versos de Cecília Meireles. Não apenas ver, vão ser agentes desse dia que cresce rápido, dia de colheita no Ecosítio Takenami e precisam fazer, cuidadosamente, com que o aroma dos verdes e o orvalho da lua permaneçam nas hortaliças cultivadas organicamente, tornando-as ainda mais especiais.

Seguindo pela estradinha de barro entre matas, fomos encontrá-los nesta lida de todas segundas, quartas e sextas-feiras. A cada passo, éramos envolvidos pela atmosfera de mistério, quietude, acolhimento, advinda da mistura dos cheiros de terra, folha e humos, do frescor das sombras, dos sonzinhos dos bichos e atritos de galhos. Adentrávamos num santuário. E dúvida não houve mais quando do meio das plantas surgiu Tupã em pessoa para nos mostrar as alfaces recém-colhidas em leiras onde várias hortaliças vicejam juntas, conforme prática na lavoura orgânica.

Roça Santuário – Tupã, ou Joanito é um dos vários agricultores parceiros do Ecosítio, em Mata de São João. São arrendatários que recebem área para produzir com sistema de irrigação e insumos agrícolas e em troca fornecem os produtos com quantidade e preço acordados. São várias roças, aqui e ali, todas protegidas pela mata preservada que regula a temperatura, quebra o vento forte e espalha frescor sobre as horta, conforme explica o proprietário do sítio, Tomohide Takenami. Na parte mais baixa, as bananeiras cercam as plantações, evitando que as chuvas provoquem a lixiviação do solo.

A água, que provém do poço artesiano de 70 m, livre de qualquer contaminação, é usada sem tratamentos. Logo se nota o empenho de harmonização do homem à natureza. Isto não é exclusividade do Ecosítio Takenami, sendo característica da produção orgânica. Neste cultivo se tenta reproduzir o que acontece num ambiente natural, como na floresta, onde os organismos vivos estão em perfeito equilíbrio.

As mudinhas são plantadas na sombra de outras plantas maiores que logo serão colhidas. Entre uma colheita e outra, as leiras recebem adubo orgânico e cobertura morta. “Assim, com sombra, água fresca e nutrição correta as hortaliças crescem rápidas e fortes”. Afirma Takenami, dizendo que as folhas fortalecidas e cultivadas de forma diversificadas fazem com que “as pragas não achem comida. Inclusive a salsa, cebolinha e hortelã, têm a função de repelir pragas. Um inseto é predador de outro inseto. Com a diversidade dessa mata aqui, haverá sempre um inseto para eliminar uma praga”.

Outro recurso eficaz é a cobertura morta que mantém a umidade do solo, favorável aos microrganismos. “Aqui tem milhares de bactérias, fungos, uma variedade infinita de nutrientes para as plantas”. Aponta Takenami passando a descrever o preparo da cobertura morta e o composto. Para a cobertura “se tritura a capineira, e deixa dentro da mata para pegar bactéria natural, que a gente chama de microrganismo eficiente. Ali fica curtindo de três a seis meses e depois a gente leva para os canteiros”. No composto, os restos vegetais levam esterco de gado, de galinha e casca de ostra.

Alimento orgânico não tem agrotóxicos, adubação química, semente transgênica, nem antibióticos e hormônios, no caso de animais, e os industrializados não podem conter nenhum aditivo químico, conservantes, corantes, aromatizantes. Para tanto é preciso um sistema complexo, que inclui o rodízio de culturas, o plantio consorciado, enfim, se aproveita o que a natureza oferece, respeitando-a num ritual de sagração da vida. E seguindo os ritos naquele santuário, íamos repassando tudo que já havíamos ouvido e lido a respeito dos orgânicos.

Ouvindo Adriana Von Sohsten, proprietária da Emporium Orgânico, loja de produtos orgânicos, dizer: “trata-se de um sistema de produção que busca a sustentabilidade ambiental, social e econômico”. Inclui o cuidado com o solo e mananciais, o respeito à biodiversidade, a preservação das reservas florestais, a recuperação das matas ciliares e proteção aos animais em risco de extinção. Em relação ao social, a produção obedece às leis trabalhistas. O aspecto econômico permeia todo processo com ênfase na agricultura familiar; no incentivo à venda direta ao consumidor; no barateamento dos preços com a continuidade da produção; a redução de gastos com saúde por evitar a exposição dos trabalhadores aos venenos, por proporcionar o consumo de alimentos saudáveis; bem como pela diminuição dos estragos ambientais causados pelos agrotóxicos.

Alimentos e Saúde – O consumo de orgânicos contribui para prevenção de doenças. A nutricionista da Clínica Amo, Graziela Brandão, ressalta que estes alimentos “ajudam a melhorar a resposta imunológica e desintoxicante que todo organismo sadio é capaz de fazer”. Para os doentes a qualidade dos alimentos facilita a cura, “contribui para o sucesso do tratamento do paciente oncológico, pois ajuda a melhorar o estado nutricional, a reduzir os efeitos do tratamento e melhorar resposta orgânica e imunológica do paciente”.

O agrônomo Thércio Vieira, produtor orgânico e consultor da empresa Vieira Orgânicos, enfatiza a necessidade de se esclarecer melhor os consumidores. “Não é o caso de descriminar, mas de fazer distinções. É preciso saber as diferenças”. Alimento natural é o não processado, não industrializado, o que não quer dizer que não seja produzido de modo convencional. Os hidropônicos, Thércio afirma, “não usam agrotóxicos, mas usam adubos químicos solúveis na água em grandes concentrações”. Existem também os agroecológicos, que são transição para orgânico: não usam adubos químicos nem agrotóxicos, porém precisam consolidar a complexidade do sistema para serem considerados genuinamente orgânicos. A principal característica do orgânico é o cultivo livre de veneno e de adubo químico, mas existem outros aspectos a serem levados em consideração.

Veneno pode – Os alimentos orgânicos, sejam in natura ou processados, passam por constante processo de auditoria para serem certificados. Existem três modos de Certificação: 1) por Certificadoras auditadas pelo Ministério da Agricultura, que cobra de R$ 2 a R$ 10 mil por ano, sendo inviável para o agricultor familiar. 2) por Sistemas Participativos, o qual, segundo Thércio desempenha o mesmo papel das certificadoras, mas de forma mais complexa, requerendo o acompanhamento por agrônomo e que os diversos grupos envolvidos (produtores, consumidores, de fornecedores, distribuidores) estejam organizados e haja a participação de órgãos públicos. 3) por Controle Social implica cadastramento no Ministério da Agricultura do grupo, associação, cooperativa ou consórcio na qual o agricultor familiar está vinculado.

As duas primeiras certificações possibilitam o uso do Selo SisOrg, o selo oficial para produtos orgânicos nos rótulos dos produtos, dando direito à venda tanto a consumidores quanto a indústrias, processadores, mercados, supermercados, lanchonetes, restaurantes, hotéis e para exportação. Já a terceira certificação não permite o uso do selo, substituído pela Declaração de Cadastro e só permite à venda direta aos consumidores em feiras, entrega domiciliar e aos programas de merenda escolar. Para Thércio, a Certificação por Sistema Participativo “é o ápice da certificação e é a que está em processo de construção em Mata de São João, envolvendo cerca de 20 a 30 produtores proprietários”.

O cultivo de orgânicos, diz Ana Luiza Lopes da Biofeira, Empresa de Produção Agrícola Orgânica, “segue parâmetros, estabelecidos na legislação brasileira o que garante a qualidade destes produtos”. Mas deixa evidente um contrassenso: “Uma empresa de produção orgânica segue rigores maiores que as empresas de verdura convencional, por mais irônico que seja, visto que são os convencionais que põem veneno na comida”.

A produção convencional também tem legislação, mas não é obedecida. Os alimentos com veneno são produzidos sem maiores controles e podem ser vendidos em qualquer lugar. “Não existem critérios para o que a gente come não venha a fazer mal. Inclusive há projeto para mudar o nome de agrotóxico para defensor agrícola e para isentar registro dos agrotóxicos”. Adriana comenta e acrescenta: “dos 50 princípios ativos usados no país, 25 são proibidos na União Europeia”. Em alguns Estados a isenção fiscal na compra de agrotóxicos é de até 100%. Parlamentares pressionam a Anvisa para “fazer vistas grossas” aos agrotóxicos. Os bancos exigem notas das compras das sementes híbridas, do adubo químico e dos inseticidas para concessão de financiamentos. Desse modo, desde 2008 o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxico. Cada brasileiro consome uma média de 5,2 litros de agrotóxicos por ano, conforme dados apresentados no documentário O Veneno Está na Mesa, de Sílvio Tendler.

A questão é o estrago que este uso incontrolável provoca. Assinala o referido filme: “O prejuízo não é só para quem usa, o vento leva para as culturas vizinhas, leva para as cidades. O veneno não está só na mesa e nem só nos alimentos frescos, mas também nos processados. O trigo condenado, também condena o pão, a pizza, o macarrão”. Em relação às consequências do abusivo uso dos venenos nas lavouras, Roberto Barreto, fundador do Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, diz que “primeiro devemos considerar a contaminação dos trabalhadores do campo acometidos por diversas doenças, desde alergia simples até o câncer e doenças degenerativas graves. O segundo maior segmento prejudicado são os moradores que vivem em volta das propriedades onde os pesticidas são aplicados, por contaminação proveniente do ar, dos alimentos cultivados e da água consumida”. Mas, de forma genérica, todas as pessoas que consomem alimentos provenientes de fazendas onde os venenos são empregados estão sujeitos a contaminação, o que no Brasil “tem índices elevados, pois cerca de 1/3 dos vegetais que o brasileiro mais consome apresentaram resíduos de agrotóxicos acima dos níveis aceitáveis” - afirma Roberto, ressaltando ainda que a contaminação dos ecossistemas naturais, tem provocado a redução das populações de diversos animais. “Registramos a contaminação de abelhas e a redução de suas populações o que tem colocado em risco a própria atividade agrícola devido a redução dos polinizadores”.

Nada disso é levado em conta, não se contabilizam os custos dos efeitos, os gastos com a saúde e os desastres ecológicos. Como dito no vídeo citado, “é mais caro pagar os efeitos do que usar agrotóxico, só que quem paga o agrotóxico é o agricultor e quem paga a saúde é a população, o sistema de saúde, o governo, todos nós”. Daí que Eduardo Galeano, no mesmo vídeo, salienta, “este veneno está sendo permitido em nome da produtividade, ou seja, em nome de um critério economicista. O que acontece com a Terra, o que acontece com a gente é muito mais importante que os números da produtividade”.

Dificuldades e Facilidades – Segundo Matheus Passos, da Pomar, empresa de fornecimentos de alimentos orgânicos a domicílio, “existe demanda grande e crescente por produtos orgânicos no mercado de Salvador, já que atualmente as pessoas têm mais consciência dos riscos que a alimentação com agrotóxicos traz para saúde e o meio ambiente”. Para ele é possível se viver só de orgânicos no que se refere a alimentos in natura, quanto aos alimentos processados, ainda não. E frisa: “hoje é possível fazer uma produção em larga escala que daria para alimentar toda a população mundial apenas com orgânicos, se houvesse investimento necessário”.

A procura por orgânicos é crescente, apesar do consumidor enfrentar algumas dificuldades: preço elevado, falta de produtos, horários difíceis das feiras orgânicas e até a adaptação à sazonalidade dos produtos. Os preços são muito altos nos supermercados onde, como diz em artigo o engenheiro agrônomo Iniberto Hamerschmidt, Coordenador de Agricultura Orgânica (EMATER / PR), “a diferença entre o preço recebido pelo produtor e o preço praticado varia de 100 a 300%. Em média o produtor orgânico recebe pelo produto 20 a 30% mais do que os produtos convencionais. Daí nossa recomendação de que o consumidor adquira os produtos orgânicos nas feiras de produtores, lojas especializadas e cestas oferecidas pelo produtor diretamente ao consumidor”.

Adriana considera que os preços dos orgânicos tem justificativa para serem um pouco mais altos. “O período que se leva tratando o solo doente pode durar meses ou anos. Nesta fase apenas se gera custo”. Contudo, como falou Vanuza Damiana Paiva, Coordenadora do Programa de Orgânicos do Ministério da Agricultura “vale a pena se gastar um pouco mais, pois o que se deixa de gastar com orgânico se gasta em farmácia”.

Para facilitar a vida dos consumidores, em termos de preços e comodidade, produtores e empresas fazem entrega de verduras, legumes, raízes, frutas e até galinha orgânica a domicilio, entre eles Ecosítio Takenami, La Poule e Pomar. A Biofeira entrega apenas para as grandes redes de supermercado, pequenas lojas e restaurantes. Os pedidos são feitos por e-mail, telefone ou no site. Fora isso, resta a opção das pequenas lojas e as feiras como a do Parque da Cidade às quintas-feiras; na Barra aos sábados no Restaurante Lighthouse e em Patamares, no Caranguejo da Bahia.

Tendências e Mudanças – Como pontua Ana Luiza, “obviamente, os seres humanos precisam se alimentar e ter certos bens para sobreviver, mas é possível se alimentar e viver com base em princípios ambientais saudáveis”. Felizmente está havendo movimento mundial em prol destes princípios saudáveis. A Dinamarca e o Butão só permitem a agricultura orgânica. Outros países restringem severamente o uso de agrotóxicos e não importam produtos contaminados, embora suas multinacionais imponham o uso dos venenos que produzem. A rejeição pode contribuir para a mudança. Adriana acha que a situação vai melhorar a partir dessa “pressão de fora, dos compradores das nossas safras”.

Também existem entidades como as Comissões de Produção Orgânica, os Fóruns Regionais de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, que como diz Roberto, “se constituem em um espaço permanente, plural, aberto e diversificado de debate para a formulação de propostas, discussão e fiscalização de políticas públicas” em prol dos orgânicos e contra os venenos. “Com mobilização, organização e ações judiciais é possível mudar o panorama atual”, ele diz. E nisto a população tem papel importante, como Ana Luiza sugere, “o que podemos fazer é nos engajar, buscar mais empresas que vendam orgânicos, demandar a produção e incentivar as pequenas empresas e indústrias focadas na produção orgânica. Afinal, com maior oferta, os preços tendem a cair”. A nutricionista Graziela compartilha da mesma opinião: “Com políticas públicas severas e, principalmente, com conscientização do consumidor, o mercado de produtos nocivos à saúde não irá sobreviver”.

E voltando ao sítio Takenami, estando no sublime acolhimento da natureza, entre a mata e as plantações, não havia como não suspirar como o poeta Garcia Lorca: “Verde que te quero verde./ Verde vento. Verdes ramas”. Verde da folhagem, verde da esperança que anima.


Xangai, menino de ardis e mestre arteiro

(www.youblisher.com/p/1393508-Revista-Pindorama-Ed-7)

Por Gilka Bandeira


Era um belíssimo dia de abril, tal qual aquele em que Toquinho e Vinicius, provavelmente, compuseram a marcha-rancho As Cores de Abril, talvez no mesmo lugar, onde agora, 42 anos depois, encontramos o cantador Xangai. “Nos ares de anil/ o mundo se abriu em flor”, enquanto o bate-papo se desenrolava na ampla varanda daquela casa feita de amor, música, poesia, diante do adejar dos poucos coqueiros que sobraram do antigo coqueiral e do farol de Itapuã, hoje tão dentro da cidade.

O sossego não é mais o mesmo, mudanças houve, é claro, mas talvez devido aos eflúvios deixados por Vinicius de Moraes e Gesse Gessy, seus amorosos primitivos donos, o que seria uma entrevista virou um das tertúlias habituais na casa. O cantador falou de tudo, tocou violão, cantou, revelou os ardis do assovio, filosofou, indignou-se, riu muito e nos deixou felizes, embora com a difícil tarefa de ordenar tudo isso sem desmerecer aquele momento.

Cantor e cantador - Xangai nos recebeu bem humorado, tranquilo e gentilmente, como lhe é peculiar. Pouco depois, declarava: “Todas as pessoas nascem para cantar, vão balbuciando, cada um com a voz, com o jeito, com o sentimento que tem. Até o choro da criança quando nasce pode ser chamado de canto, mesmo porque o nascimento já vem encantado”. E com risinho, revela que ele já cantava “antes de nascer nessa encarnação”.

Cantar todos cantam, mas ser cantador é um dom divino. “Quem ensinou os repentistas a serem repentistas”? E diz que cantador é a pessoa que nasce com a condição de cantar e exerce a cantoria. “O cantador, exemplo Elomar, exemplo eu e mais alguns, cantam as suas circunstâncias, cantam de dentro pra fora, canta o que quer cantar. Já o cantor é mercadológico, canta o que lhe mandam cantar para fazer o ‘maior sucesso”. Segundo Xangai, todas as pessoas que nascem com esta condição de cantar “devem ser gratos ao universo, a Deus, e honrar”. E honrar, explica, “é fazer o melhor possível, como penso que procedo. Quero, através da minha arte, mostrar a beleza, sensibilizar, ajudar meus semelhantes e a mim próprio a evoluir. Nada de mirabolância, apenas com a naturalidade com que a arte pode ser mostrada”.

Com maior admiração pelos repentistas, apressa a dizer que “é claro que aprecio os outros compositores populares e clássicos, como Cartola, Adoniran Barbosa no humor, João do Vale, Marinês, Jacinto Silva, nosso querido Caymmi, Gordurinha, Assis Valente, Gilberto Gil e Caetano Veloso, o nosso queridíssimo Villa-Lobos”.

Aboios e Têmpera – Ainda sobre honrar o dom, confessa: “Eu venho ao longo da minha vida acanhada buscando aprimorar para proporcionar uma arte que sirva pra isso que falei, ajudar na evolução. E a gente se aprimora através dos exemplos recebidos”. No caso dele, os exemplos vieram cedo na voz dos passarinhos, no aboiar dos vaqueiros na fazenda do pai. “Eu me descobri cantador antes de saber o ABC, me criei montado num cavalinho, aprendi todas as melodias dos aboios que eles faziam, uns cantavam aboios em dueto, fazendo terça...”. Num átimo, nos sentimos numa fazenda ao ouvi-lo ilustrar o que diz, entoando os aboios.

O pai, embora vaqueiro, nunca foi um grande aboiador, mas já o compadre João... “era uma melodia na voz gentil, pé de louro”. Seu Jany, o pai, podia não ser um aboiador, mas era sanfoneiro, assim como o avô Avelino, de quem Xangai herdou o nome. “Ele gostava de música e sempre tinha bons sanfoneiros em casa, acho que aprendi muitos macetes com eles”. Nisto, lembra do disco em que o pai participa: “Ele abre, toca a primeira música da própria autoria, Xote Mariá, homenagem a minha filha, eu canto todas as músicas e no final ele fecha tocando Estrela do Norte, música do vovô Avelino, só instrumental, só sanfoninha, lindo! Sabe, é como fosse um ritual, coisa linda, simboliza um elo, um amor” - diz emocionado.

Às raízes sertanejas somaram-se influências acadêmicas, entre tantas, “Castro Alves, Guimarães Rosa, Ruy Espinheira Filho, poetas que admiro muito, Manoel Bandeira, estes poetas extraordinários, um Camões...”. Destaque para “as duas poetisas que tocam fundo no meu coração, uma escreve a dor que é Florbela Espanca e a outra, Cecília Meireles, escreve o amor macio, mais maneiro, a poetisa da borboleta, da bailarina, dos carneirinhos. Interessante o que a arte pode proporcionar, a dor, o lírio no lodo e o sorvetinho gostoso, a lã do carneiro. São as minhas duas queridas. Quisera eu ter conhecido elas. Já musiquei poemas delas”.

Malungagem- Dos exemplos que ajudam a aprimorar, chega à têmpera, perguntando: “Quem deu a têmpera para Luiz Gonzaga?” e ele mesmo responde: “foi o doutor do baião, Zé Dantas, conquanto houvesse outros, através da poesia do lugar deles, o regionalismo. A mim, quem me deu a têmpera foram as referências que citei e, principalmente, Elomar, através da malungagem”. Para quem não sabe, explica o que é Malungo na linguagem catingueira, através da analogia dos bois de canga no pescoço, que ficam rusgando que um deixa peso maior para o outro, mas de tarde, quando o carreiro tira a canga, eles pastam juntos.

“Pois bem, malungo é isto, companheiros inseparáveis, de força de verdade. Então eu tenho uma malungagem com Elomar, e nesta malungagem a gente aprende as coisas do outro. É uma simbiose de ideias, de encontro, de conhecimentos”. E complementa: “Eu sei que me beneficiei muito disto, primeiro tem a sua obra maravilhosa que adoro interpretar. Muitas pessoas dizem que eu sou o melhor intérprete dele, é bobagem, não canto melhor que ninguém, eu só canto do jeito que eu canto, a diferença é que a linguagem dele eu conheço, por ser da região, por ter passado muito tempo junto, é como se fôssemos bodes do mesmo chiqueiro ou galos do mesmo terreiro”.

A esta altura, Xangai pede licença para servir o café com cassutinga que sai quentinho da garrafa térmica revestida de couro decorado, que leva sempre consigo, manias de sertanejo. Conta que foi presente de um amigo trazido da fronteira do Brasil com Paraguai. No chapéu, o detalhe da discreta peninha colorida, no colete uma flor bordada, e nos braços o violão, que empunha o tempo todo, dedilhando-o vez por outra.

Um passarinho canta perto e Xangai assovia igual, e dizendo que “a música vem da natureza”, passa a mostrar as técnicas que desenvolveu na arte de assoviar, numa espécie de aula-show. Normalmente se assovia para fora, porém como aprendeu menino, e “menino tem ardis, eu assovio assim, soprando uma nota pra dentro, outra pra fora, conforme a sanfona de oito baixos”. E estando na casa de Vinicius, assoviou o Samba da Bênção desta forma. Em seguida ensina como conseguir trinado no assovio: “Tem de deixar um pouquinho de líquido na boca, e inclino um pouco a cabeça pra frente para ajudar a permanência do líquido na boca, e agora assovio, soa como um trinado. Percebem”? E reafirmando que “menino não é gente”, mostra mais um tipo de assovio: “Pressiono” um lado da bochecha e o outro fica livre” assovia e diz: “sentiu que tem um dueto”? Ri com matreirice dos seus ardis.

Momento Musical - Por causa do sol, que forte incidia sobre nós, mudamos de ambiente, deixamos o jardim e nos instalamos no gabinete de Vinicius, entre seus objetos, diante da sua máquina de datilografia, dos quadros, talvez dele próprio que se interessaria por aquela conversa. Retomando o papo, Xangai declarou: “A música brasileira, a cada dia que passa, está melhor”. Ante a surpresa, esclarece que é o que descobriu nas inúmeras viagens que faz por todo o país. “Num hotel, num camarim, sempre aparece um cantor, uma cantora, um compositor, um poeta, fazendo uma coisa maravilhosa, no Brasil inteiro. Paradoxalmente, o que é mostrado nos meio de comunicação é a pior coisa possível, ai é que está a diferença, tá explicado”?

E mostra-se indignado: “é de uma gravidade, de uma perversidade, de uma maldade, pior que qualquer inquisição, abriram as portas e as comportas da permissividade danosa com essa indecorosidade dentro dos meios de comunicação, oferecendo essa lavagem, esta relentagem, esta fuleragem que está aí”. Lembrando que todas as rádios são concessões públicas, pergunta por que não tocam Villa-Lobos, Caymmi, Elomar, Luiz Gonzaga, Capiba, os frevos... “Dizer que o povo só gosta do que é ruim, é mentira. Dizem que cachorro gosta de osso, gosta, mas bote um osso e um filé na frente dele e veja o que ele vai comer”.

Continuando a lamentar o estado de coisas, exclama: “Se pecado existe, este é o maior pecado que um governante pode fazer, permitir que as rádios fiquem sem programas educacionais, sem espaço para poesia, sem radioteatro de qualidade”. Felizmente, ressalta, “no meio dos atentados tem os atentos, por isso que eu digo que a música continua a melhorar, mas estou falando de música, não essa indecorosidade do marquetingue, da mentira, da música ruim que serve para deseducar, que faz do povo gado que tem que comer aquela ração que lhe dão, sem poder de escolha. Isso é uma coisa danosa, incita a violência, o consumo da droga exacerbado”.

Lá pelas tantas, Xangai confessa ficar “numa felicidade de muito grande”, quando compõe. Mas se diz mais do time dos intérpretes, “só que eu ainda dou minhas escapadas e faço alguma coisa, mas não tenho uma produção como compositor. Podem dizer que sou preguiçoso, não sou, e não é por falta de parceiros, estes tenho bastante (Capinam, Salgado Maranhão, Maciel Melo, Jatobá, Ivanildo Vilanova), é porque não me atenho a isto”. Se diz um compositor médio, “mas não em termos de qualidade, porque meu coração age como um filtro, como um coador de café e este coador não é furado, não passa borra, eu só canto a música que me pede pra eu cantar”.

Conta que Maciel Melo uma vez lhe deu uma fita com dez, 15 músicas, “foi passando, de repente no meio delas, uma me pediu para cantar. ‘Não, não é brincadeira não, não...” [cantarola]. E dá outro exemplo: “Todo mundo, de Cartola, canta As Rosas não falam, mas eu canto ‘Ensaboa mulata, ensaboa, ensaboa, estou ensaboando’ [canta]. A música que faço também me pede para cantar. Um bocado de música que faço não passa no meu filtro. Agora, quando vem com força é como que me obriga a cantar”.

Novela Global – A conversa passa por anglicismos, reencarnação e vivências espirituais, pela excelência do seu público e chega à sua atuação na novela Velho Chico, da Rede Globo. Tendo sido convidado por Luiz Fernando Carvalho, diretor da novela, só aceitou participar “por ser uma novela boa, bem feita, é cinema, ele é o melhor diretor de novela, me sinto honrado, se fosse uma fuleragem, uma porcaria, não ia fazer”.

Foi ele quem indicou Maciel Melo para ser seu parceiro e quem também mudou os nomes dos personagens, que inicialmente eram Zé Teiú (Maciel) e João Pirauá (Xangai). “Falei para Luiz Fernando não me deixar com síndrome de personagem de novela global e sugeri pra Maciel o nome do avô dele que era tropeiro, Egídio, e pra mim o do meu avô, Avelino, que é também meu nome. Vou ficar com a síndrome de mim mesmo. Também compusemos (Maciel e eu) músicas para a novela”.

E pra terminar, Xangai se define: “Não sou artista não, sou arteiro, como os artesãos, sacou? Do verbo sacar? É assim que sou, tocando meu violãozinho, não sou um Mario Ulloa, mas toco do meu jeito, gosto de tocar e cantar, é desse jeito que sou, é assim que nós


Feito de sonho e rebeldia, o Teatro Vila Velha continua efervescente

Por Gilka Bandeira

http://www.youblisher.com/p/1533710-Revista-Pindorama-Ed-9



Ao lado do Palácio há um pórtico, além dele, um jardim antigo com estátuas, bancos, belvedere dando para a mais bela baía que há e históricas árvores seculares, entre elas uma enorme palmeira imperial plantada em 1859. Num canto do jardim, um teatro, não simplesmente um, mas o muito amado Teatro Vila Velha (TVV), como ficou evidente durante a campanha para salvá-lo do fechamento. De tão significativo chega a ser um ente, conforme diz emocionada Sônia Robatto, uma das suas fundadoras, “Não sinto o Vila como algo feito de barros, pedras, considero um ser vivo, um amigo companheiro que está sempre ao meu lado. Meu sentimento para com o Vila Velha é de amor”.

O arcabouço foi, sim, feito de pedras e barros, como bem sabe Sônia, que com os outros artistas pegaram na massa, em meio aos operários, para construí-lo, porém o ideal, o esforço, as circunstâncias todas e a história que foi sendo construída lhe deram alma. Alma sempre ativa como se podia constatar naquela tarde de terça-feira. No palco principal se montava o cenário para a estreia nacional da nova versão de “Bispo”, de João Miguel; na sala de ensaio acontecia uma das muitas oficinas; o foyer era preparado para mais uma das Terças Pretas, enquanto na varandinha da entrada diante das árvores, ao som dos passarinhos e tambores de ensaio, ocorriam as entrevistas.

Novos Quixotes – Era 1959, faltava apenas 3 meses para a primeira formatura da Escola de Teatro da UFBa, quando toda turma abandonou a Faculdade após se indispor com o diretor Martins Gonçalves. Maluquice de jovens rebeldes e sonhadores. Reconhece Sônia. “Mas também, se não tivéssemos cometido esta loucura, o Teatro Vila Velha não tinha sido criado”. Os insurretos atores Othon Bastos, Carlos Petrovich, Nevolanda Amorim, Sônia Robatto, Mario Gadelha, Echio Reis, Teresa Sá e Carmem Bittencourt, liderados pelo professor e diretor teatral João Augusto se uniram e criaram a Sociedade Teatro dos Novos, a primeira companhia profissional de teatro da Bahia.

Durante anos, o grupo vivia ocupando casarões abandonados. “Quando derrubavam um a gente ia pra outro” - conta Sônia. A trupe conseguia uma verbazinha do governo, através da venda de espetáculos e se apresentava em praças públicas e nos adros das igrejas. “Botavam um tablado e a gente fazia as apresentações. As peças eram sobre temas religiosos ou infantis”. A primeira montagem foi o Auto do Nascimento de autoria de Sônia, dirigida por João Augusto, encenada em frente a Igreja de São Francisco. Depois, com ajuda das prefeituras alugavam caminhão palco. “A gente achava tudo bom, erámos unidos, idealistas, acreditávamos que podíamos mudar o mundo. Nada era mais importante do que fazer teatro. Deixamos empregos, tudo mais, para seguir esta vida. Estou com 78 anos, desde os 18 fazendo teatro e até hoje não há nada melhor que estar no palco” - revela Sônia, que além de atriz, teatróloga, é bibliotecária e escritora de livros infantis.

Em 1961 o Governo cedeu à Companhia um terreno no Passeio Público para edificação do teatro, que teve projeto arquitetônico de Alberto Fiúza e Silvio Robatto e recebeu, em homenagem a Salvador, o nome de Vila Velha, primitiva designação da cidade. “Os próprios atores trabalhavam junto com os operários, todos pegamos pesado, eu mesma, com as mãos finas, montei muita cadeira. Os operários ficavam com pena da gente”- observa Sônia.

Foi dura a luta para conseguir dinheiro e material da construção. Iam nas construções pedir sobra de material, um pouco de brita aqui, areia ali, “construíamos com que encontrava, tanto que o piso da plateia e do palco era de asfalto e o foyer de paralelepípedos, pois fora o que conseguimos”. Sônia continua lembrando. Faziam apresentações, passavam livro de ouro, vendiam cerâmica e outras coisas, compraram as cadeiras do teatro de Santo Amaro. “Somos heroicos”. Exclama Sônia orgulhosa, mas ressaltando a ajuda que receberam. “A população ajudou demais, todo mundo gostava da gente e ajudava. Artistas, como Calazans Netos, ofertavam quadro para serem leiloados... Foi uma coisa muito bonita”. E conclui taxativa: “Por isso, o teatro não foi daquele grupo, é de todo mundo”. E em 31 de julho de 1964, em plena ditadura, o Teatro foi inaugurado com a apresentação da peça Eles não usam black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, dirigida por João Augusto. Dias depois da inauguração, acontecia o marcante show "Nós, Por Exemplo", que revelou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé entre outros.

A história continua – O Vila viveu período áureo na década de 70, como lembra Márcio Meireles, diretor artístico do TVV, “tinha efervescência, tinha coisas incríveis acontecendo”. Depois, com a morte de João Augusto em 1979, segundo Márcio, o teatro “caiu, as pessoas tentando fazer as coisas sem um projeto político e estético que o TVV sempre teve”. Depois de passar por três experiências que não deram certo, falou-se que a Sociedade Teatro dos Novos queria vender o teatro. “Não era verdade, eles não queriam de fato vender, queriam dar um caminho. Entrei em negociação com a ideia de resgatar o espírito do teatro que estava meio disperso” - Márcio explica.

Para não ficar apenas com o Bando do Teatro Olodum, que ele tinha criado e dirigia há quatro anos, Márcio chamou outros grupos, o Cereus, que Hebe Alves dirigia e Wagner Moura trabalhava, o Cria e o Bando. “Estes grupos conviviam aqui, tocavam a administração, a técnica, limpavam o teatro, ensaiavam, se apresentavam”. Depois o Cria saiu para casa própria, o Cereus se dissolveu, e terminou ficando apenas o Bando, mas com vários projetos e artistas circulando como o Meia Noite se Improvisa, Companhia da Bazófia, Zeca de Abreu. “Também chamamos Caetano, Bethânia, Gil, Tom Zé, Margareth Menezes, os que tinha uma história aqui, para darem um presente ao teatro, fazer shows, que o revitalizaria” - conta Márcio.

Também foi possível, através da Secretaria de Cultura do Estado (Secult), fazer uma grande a reforma com ampliação, dando o feitio atual, onde se sobressai o palco contemporâneo, único na Bahia, que de acordo com Márcio “pode se transformar em vários espaços”. Passou a dispor do Cabaré dos Novos (sala alternativa), mais duas salas para ensaio e atividades de formação e capacitação, o foyer, o estúdio audiovisual e o Centro de Documentação e Memória Nós, Por Exemplo, onde são preservados documentos da história do teatro baiano.

Tendo nascido a partir da rebeldia e do sonho, se caracterizou como espaço de liberdade, “num lugar de questionamento, de reivindicação. É um teatro revolucionário, de muita personalidade”, afirma Bianca Araújo, coordenadora do TVV, o que é comprovado ao longo da sua história. Acolheu artistas e estudantes perseguidos pela ditadura, abrigou encontros do movimento estudantil. Foi sede da Anistia Internacional. No seu palco aconteceram os julgamentos e aprovação das anistias políticas do cineasta Glauber Rocha e do guerrilheiro Carlos Marighella. Mais recentemente o Vila abrigou o Movimento Desocupa, realizou o projeto A Cidade que Queremos, apoiou o Movimento Passe Livre.

Singular e Plural – O TVV tem mantido integridade estética e política, sendo também espaço de investigação, de pesquisa, de abertura pra novos artistas. Outra sua característica é a aposta “em pessoas que não se sabe no que vai dar” – diz Márcio. “A gente recebe uma proposta, ninguém conhece os caras, é um tema complicado, estética difícil, mas vale a pena arriscar, porque é novo, diferente. Às vezes é um fracasso, mas às vezes daí sai um Lázaro Ramos, um Othon Bastos”. Muitos artistas de renome nacional e internacional têm na sua história o começo no TVV. Importantes grupos artísticos nasceram ou foram abrigados ali, como o Teatrinho Chique-Chique, Vilavox, Companhia Novos Novos, Viladança, Vivadança, Teatro Livre da Bahia, Outra, Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas, Cia Teatro da Queda, Supernova. Conservando o espírito inicial nunca parou, nem durante a reconstrução, entre 1994 e 1998, com os atores atuando e o público acomodado entre tijolos e sacos de cimento.

E assim ainda acontece, “passou por muitos momentos frutíferos, difíceis, de indagação, de questionamentos, mas sempre se mantendo firme e revolucionário. Acho que o Teatro Vila Velha representa a nossa sociedade de forma muito singular” - observa Bianca. Por isso Sônia declara que o TVV é mais que um teatro, é “companheirismo e muita responsabilidade”. O Vila consegue ser singular e plural. É singular por produzir os seus espetáculos, fugindo da regra geral de apenas ceder pautas. É plural porque apesar desta singularidade de produzir seu próprio conteúdo, produz diversificado, dialogando com muitos públicos. “O pessoal que curte o Bando de Teatro Olodum é um público, o pessoal que curte a o Viladança é outro, o mesmo ocorrendo com os espetáculos infantis, internacionais e da Universidade Livre” - destaca Bianca.

Para produtora Valdineia Soriano, atriz do Bando de Teatro Olodum desde sua formação em 1990, é um privilégio ser residente do Teatro, “onde você faz e monta espetáculo no mesmo lugar. Eu não preciso ensaiar fora e depois vir botar o espetáculo no palco, um mês antes eu já posso ensaiar no palco”. Outra vantagem desta residência, que já dura 20 anos, é a relação de parceria: “Quando a gente está com boa bilheteria a gente paga a pauta, se não, a gente rateia a bilheteria”.

Outra peculiaridade do Vila são os programas de formação, principalmente a Universidade Livre criada em 2013 e que está com a segunda turma. O programa que dura três anos, tem o reconhecimento do sindicato e registro profissional na Delegacia Regional do Trabalho com certificado, o que permite aos atores atuar em teatro, cinema, televisão. A Universidade Livre segue o principio do “fazendo e aprendendo” e fazendo tudo, cenário, figurino, material gráfico, programa, cartaz, luz etc. Segundo Márcio, idealizador do curso, “a ideia é que cada um construa seu próprio método criativo a partir destas referências”. Desta forma os futuros atores “estão em cena sempre, quase que diariamente, não ficam numa sala aprendendo a fazer teatro para um dia fazer, aprendem fazendo, quebrando a cara, encarando o público”.

Rede de Afeto – Apesar do glorioso passado, e dos atributos que lhe dão significado especial, o TVV enfrenta sérios problemas financeiros. As despesas são pagas em parte com receita da Secult, através dos Programas de Ações Continuadas, que beneficiam muitas outras instituições culturais. Com isso, afirma Bianca, “conseguimos pagar, mais um menos a metade das nossas despesas. A outra parte tem que se pagar com recursos próprios, de nossas bilheterias, programas de formação, das oficinas. Evidente que nem sempre esta conta bate e ficamos administrando de forma muito guerreira”. Márcio revela que precisam de pelo menos R$ 35 mil por mês e a bilheteria não dá isso. “Se tem uma semana legal a gente recebe 5 mil”. Além disso, as condições do prédio não são nada boas já que a última reforma foi feita há 20 anos. “O ar condicionado pifou de vez, temos que comprar outro, que custa em torno de R$ 700 mil. Estamos alugando um e tentando que este um seja amigo do Vila”.

Entretanto, o diretor artístico se mantém confiante. “A gente vai se virando, o fato é que o teatro não vai fechar, ponto. Agora como? Eu não sei”. Esta confiança advém da recente Campanha Cole com o Vila, realizada para garantir a sobrevivência do TVV. O resultado financeiro não foi o esperado. Mas tornou visível uma rede de afetos, as pessoas declarando a importância do Teatro, além do apoio de profissionais, como Lázaro Ramos; “Uma menina que foi assessora de comunicação do teatro, quando começou a campanha, perto do aniversário dela, botou no Facebook, quem gosta de mim e quer me dar um presente colabore com o Vila, porque o que sou, é fruto de lá”- conta Márcio. Isto deu novo ânimo ao pessoal que já “temia que o teatro não fosse mais importante pra ninguém. A gente comprovou que este teatro é necessário”. A campanha pelo site kickante acabou. Mas, avisa Bianca, “estamos abertos a doações”.

Na rede de afeto, naturalmente estão os que atuaram e atuam no TVV. Para a artista e diretora teatral Zeca de Abreu, o Vila Velha representa sua vida. “Amo muito ele, acho que é uma resistência concreta em relação a tudo, ao espaço cultural, ao que se apresenta aqui, ao fato de dar chances para as pessoas que estão começando”. João Miguel, premiado ator de teatro cinema e novelas, enfatiza o papel do Vila como ponto de encontro. “Vivemos num momento muito sério de perda de identidade, ao que diz respeito como você ocupa os espaços da sua cidade. Então o espaço do Vila é importantíssimo por isso e, claro, por ser um teatro maravilhoso. Você pode armar ele de mil maneiras, não existe outro deste em Salvador, um teatro que pode ser moldado a cada espetáculo e isto é muito legal”.

Valdineia destaca a representatividade do TVV, dizendo: “Nossa, eu acho que o Vila é um teatro de muita representatividade para o Brasil, primeiro que ele foi construído em 1964 por artistas, isso já dá um nível de importância imenso. Daqui saíram artistas para o Brasil e para o mundo, Othon Bastos, Lázaro Ramos, Érico Braz, Virginia Rodrigues. É o único na Bahia com essa coisa de praticável, essa forma de montar o palco é incrível”. E conclui: “É um teatro de representatividade nacional de verdade. Para gente que é baiano é motivo de orgulho e o Brasil também deve se sentir um pouco orgulhoso”.

Dificuldades a parte, o TVV está, no dizer de Márcio, “borbulhando de energia, só este ano já tivemos milhares de coisas acontecendo, nacionais, internacionais e locais”. O TVV não vive só de passado, como salienta Bianca, “o momento marcante do Vila é o presente. Cada dia a gente está fazendo uma coisa significativa. Acho que é um teatro que embora tenha uma grande história, um passado que nos coloca num lugar de muita importância, tem também um presente muito ativo, efervescente e um futuro otimista”. Portanto, tem razão Sonia quando disse que mais que uma casa de espetáculo, o Teatro Vila Velha é um ser vivo, alma pulsante que nunca parou, nem mesmo durante obras de restauração “e há de continuar sem parar jamais” – assegura Bianca. E pelo que se vê, assim será.


Rio Vermelho, e de todas as cores

Por Gilka Bandeira

Todos os tons de um bairro histórico, cultural e boêmio, berço do povo brasileiro, aquarela do entretenimento de Salvador.

(www.youblisher.com/p/1393508-Revista-Pindorama-Ed-7 )


Num certo dia, de um mês que não se sabe, no provável ano de 1509, o naufrágio de uma nau acabou por fazer nascer um novo povo e um povoado que virou estância, que virou uma referência. O único sobrevivente, Diogo Álvares Correia, resgatado pelos índios tupinambás na Pedra da Concha, se encarregou de, juntamente com a índia Catarina Paraguaçu, produzir brasileirinhos. Assim, pode-se dizer que o povo brasileiro, além de ter pai europeu e mãe itaparicana, nasceu no Rio Vermelho, que no dizer do pescador João Carlos da Cruz, ou Chapada, 55 anos, “é o lugar mais famoso da Bahia”. Todo orgulhoso, reforça que “não existe lugar mais falado que aqui, é mundialmente conhecido”.

Se é o mais famoso, é difícil garantir, mas a começar por ser marco da brasilidade e por todas as peculiaridades que se foram acumulando ao longo dos séculos, sem dúvida é um bairro muito especial. Da aldeia tupinambá, primeiro entreposto de escambo de pau-brasil, aldeia de pescadores, refúgio para os fugidos da invasão holandesa, estância de veraneio dos abastados da capital, moradia de artistas e intelectuais excêntricos, chegou ao que é hoje: um bairro multifacetado. Para a chef Tereza Paim, do restaurante Casa de Tereza, o Rio Vermelho “é boêmio, cheio de cultura e história. Um mix de bares, restaurantes, casas de show, serviços de toda natureza e lojas de rua que nos faz ser vistos como um shopping a céu aberto”. O que Guilherme Pauperio, proprietário do Rhoncus Pub, complementa: “O espaço perfeito que consolida público e ambiente”. Já Lauro Matta, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Rio Vermelho, define o bairro como sendo “a locomotiva de Salvador”.

Colorido prisma – Lauro prefere destacar o lado artístico: “Falam muito no Rio Vermelho como bairro boêmio, eu não gosto disso. Eu vejo é Jorge Amado e Zélia Gattai sentados numa praça, Dorival Caymmi andando por aí, Caribé, Mário Cravo, Floriano Teixeira, Jenner Augusto, José Pancetti, José de Dome, Raymundo de Oliveira, Luiz Jasmin, e João Ubaldo Ribeiro, que passou o início da adolescência no Rio Vermelho. Acho que deve ser chamado de Bairro Artístico”. Os aspectos enfatizados por um ou por outros compõem o todo, são as diversas cores da luz decomposta num belo prisma: é sítio histórico, cultural, artístico, boêmio, turístico, local da maior festa dedicada à Rainha das Água, espaço de compras, de convivência e divertimento, lugar gostoso de morar, visitar e estar. É um bairro completo que tem vida própria inclusive cultural, como diz Rosa Villas-Boas, coordenadora do Teatro do Sesi Rio Vermelho. “O Pelourinho e a Barra também têm movimentação cultural, mas dependem dos recursos do Estado. Aqui as coisas acontecem mesmo sem esta ajuda, embora fosse muito bem vinda”.

Quem mora acha de tudo fácil, quem vai ao Rio Vermelho sabe que encontrará sempre várias opções e perto umas das outras, de dia ou de noite. São restaurantes diversificados, desde a mais trivial comida de mercado do Edinho, aos mais requintados e tradicionais como o Póstudo, teatro, atelier de artistas, galerias de arte, designer de moda, instituições sócio-educacionais como a Cipó Comunicação Interativa, antiquários, prédios antigos, a Casa do Peso, Casa de Iemanjá, Colônia de Pescadores, Mercado do Peixe, Mercado do Rio Vermelho, chaminé da primeira fábrica encravada num posto de gasolina, Igreja Matriz de Senhora Santana, tradicionais acarajés da Cira, Regina e Dinha, a Pedra da Concha, Casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, Biblioteca Juracy Magalhães Junior que mantém o Espaço Caramuru com acervo especial sobre o bairro; até pub nos moldes inglês e irlandês, o Rhoncus, especialista em cervejas artesanais.

Uma das peculiaridades do Rio Vermelho é a oferta diária de peixe fresco. Vários restaurantes locais compram diretamente da Colônia Z1. “Aquele mesmo, lá de cima do morro, é um deles”. Diz o pescador Chapada, referindo-se ao Takê, acrescentando: “Ficam de binóculos e quando veem um barco chegar, vêm comprar o peixe saído do mar”. Tem pescado de todas as espécies para todos os gostos, de badejo a chicharro, de olho-de-boi a alvacora, guaricema, arraia, etc. Saborear um peixe fresquinho, neste tempo de congelados e conservantes, é, sem dúvida, um prazer especial e até desperta a gratidão quando se pensa na labuta dos homens que vivem do mar, no mar e pro mar.

Começo histórico – A história do Rio Vermelho tem início no século XVI, poucos anos depois da chegada de Cabral, quando o náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, é resgatado na Pedra da Concha pelos tupinambás. Sem que se saiba bem como e por que, caiu tanto nas graças dos índios que chegou a liderá-los em assentamentos, primeiro no próprio Rio Vermelho onde negociava pau-brasil com os franceses, depois na Ponta do Padrão, atual Farol da Barra, estendendo-se ao outeiro da Graça.

Por muito tempo permaneceu sendo aldeamento de pescadores com suas choças distribuídas à beira mar ou entre mata próxima. Ainda no século XVI, foi construída uma pequena ermida de taipa e palha, que no século XIX se transformaria na Igreja Matriz, a mais antiga construção do bairro. Durante a invasão holandesa, em 1624, muitos moradores de Salvador foram se abrigar no Rio Vermelho, onde também se organizou forças de combate aos invasores. Muitos que vieram em fuga resolveram ficar e o povoado cresceu. No mesmo século foi construída a capela, totalmente desaparecida, de São Gonçalo do Amarante, padroeiro do lugarejo, restando apenas a devoção da Senhora Santana, incrementada a partir do aviso que ela teria dados aos moradores, evitando que fossem convocados para a Guerra de Canudos.

No século seguinte, conforme narra o escritor Ubaldo Marques Filho, também diretor da Casa de Cultura Carolina Taboada, “foi construído o primeiro e único forte de defesa da Cidade do Salvador fora da Baía de Todos-os-Santos, que não chegou a ser totalmente concluído e recebeu a visita de Dom Pedro II quando já se encontrava abandonado”. Trata-se do Forte de São Gonçalo, erguido onde hoje está a igreja nova ao lado da Casa do Peso. Resquícios da muralha ainda podem ser vistos na parte de trás da igreja.

Tornou-se um balneário turístico, o primeiro da Bahia, cuja época áurea situa-se entre 1880 a 1930, ganhando casarões e palacete. “Nesse período surgiram várias novidades, dentre elas dois hotéis, uma linha de bondes elétricos de interligação com a área urbana de Salvador, um hipódromo e estádio de futebol, o primeiro construído na Bahia com campo gramado, com pista de atletismo, arquibancadas e cobrança de ingressos, pois era fechado” - conta Ubaldo Marques. Também data desta época o início da tradição boêmia, herdada dos veranistas.

Aos poucos o veraneio foi sendo substituto por residência fixa, principalmente para artistas em busca de sossego e beleza. O Rio Vermelho conservou-se tranquilo até a década de 1960. A partir daí, o panorama mudou mais rapidamente com a implantação do Loteamento Jardim Caramuru, o Ipase, e as fábricas da Coca-Cola e dos Biscoitos Águia Central, atraindo população pela oferta de emprego. Foi também nesta fase que se construiu a nova Igreja de Santana e a Casa do Peso. Mas a grande transformação ocorreu nos anos 70 como resultado do boom imobiliário, que se iniciou com o conjunto residencial Santa Madalena, inaugurando a verticalização do Rio Vermelho, e a instalação de grandes hotéis, a começar pelo Meridien. Então, como relata Ubaldo Marques, o Rio Vermelho “deixou de ser um reduto eminentemente residencial para ser um bairro com a presença marcante dos setores do comércio e de serviços”.

Cara nova – O Rio Vermelho mais uma vez se transforma com a atual requalificação. As obras deram nova aparência ao bairro dinamizando mais as suas características e criando boas perspectivas para os empresários. De acordo com Tânia Scofield, presidente da Fundação Mário Leal Ferreira, responsável pela revitalização, no processo de urbanização “foi mantido e valorizado tudo aquilo que há de tradição, de história e de cultura do bairro”. A reforma compreendeu obras de infraestrutura; pavimentação de ruas e praças; construção de novos passeios, sendo o da orla todo margeado por ciclovia; adequação dos acessos ao princípio da acessibilidade universal; entre outros. A reforma custou R$ 44 milhões, tendo 2,3 km de extensão e 140 mil m² de área urbanizada. O projeto completo iria da Praia da Paciência até o Quartel de Amaralina, porém parou no Largo da Mariquita, “em decorrência da crise econômica que passa o país e que afeta o Município” – justifica Scofield.

Para o pescador Chapada, “a reforma foi maravilhosa, ajeitou tudo, o esgoto entupido que dava problemas e poluía... Está mais tranquilo, com menos violência, pois dia e noite tem muita gente passando”. Rosa Villas-Boas lembra que “o Sesi teve que ficar fechado durante cinco meses, contudo valeu a pena. Temos aqui o ‘Bairro Conceito’ que reúne empresários e conseguimos muitas melhorias, entre elas plantação de mais árvores.”. Apesar de satisfeitos, alguns têm ressalvas a fazer. Tereza Paim reconhece que “a primeira etapa da obra de requalificação mudou a cara do bairro, que está cheio de áreas de lazer e convivência para serem usadas pelos moradores e visitantes”, todavia salienta: “a obra não pode parar, pois temos problema críticos de drenagem que na época das chuvas invadem nossas casas, gerando um caos. As chuvas já começaram e o largo de Santana, que nunca alagou, ficou submerso”.

Também Ubaldo Marques acha que “o visual ficou espetacular e provocou o que nunca se viu no Rio Vermelho: a participação de pessoas de todas as faixas etárias e de famílias inteiras passeando pela nova orla do bairro”. Mas denuncia que “a beleza estética da nova orla escondeu uma agressão à história do bairro de Caramuru, a cobertura de concreto colocada na foz do Rio Camurujipe”.

Teatrinho ousado – O Rio Vermelho tem vocação inata para o pioneirismo, a começar por ser o local onde um europeu primeiro se fixou na Bahia, quiçá no Brasil. Sua história está cheia de: foi o primeiro bairro que... Assim, não é de se admirar que tenha sido nele que se instalou o primeiro teatro de bairro, o Maria Bethânia, que ao ser fechado, foi substituído pelo Sesi, há 19 anos. Na época, “Salvador tinha poucos teatros, então foi um momento muito importante. É um teatro de bolso, tem apenas 97 lugares na parte interna e 120 na Varanda, mas está neste bairro de movimento cultural, um bairro boêmio, e isto faz a gente ter uma demanda grande, ser muito atuante. É pequeno, mas ousado” – diz a coordenadora.

Com frequência mensal de 4 a 5 mil pessoas, o Teatro mantém programação intensa e variada de segunda a segunda, privilegiando o tipicamente baiano e brasileiro de qualidade, como bossa nova, chorinho, samba, com destaque para Aderbal Duarte e grupos como o Mandaia e o Barlavento. Segundo Villas-Boas, “o teatro tem por princípio ajudar os artistas locais a se projetarem. Abriu a porta para muitos artistas, como por exemplo, Wagner Moura. É a vitrine dos artistas da cidade. Muitos curadores em busca de talentos, ou pessoas que querem contratar artistas para algum evento, costumam vir procurar aqui”. O Teatro ocupa um belo casarão antigo, construído na segunda metade do século XIX para veraneio, que já serviu de sede para uma Torrefação de Café antes de virar o principal ponto cultural do bairro.

Mercado – Entre tantas atrações, também está o Mercado do Rio Vermelho, que recentemente foi reformado, se tornando ponto de convergência cultural, gastronômica e social no bairro. De acordo com Paulo Henrique Martins, gerente da Enashopp, empresa que administra o mercado, “toda cidade vem para cá. É uma atração turística e queremos incrementar isto mais ainda. Queremos que venha ser referência como o Mercado de São Paulo é”. Gabarito pra isso não falta: produtos típicos, artesanato, boa praça de alimentação, atrações culturais, espaço agradável.

Paulo Henrique ressalta que o fluxo melhorou muito a partir da reforma, sobretudo com público das classes A e B. “As pessoas gostam, elogiam muito a aparência, as instalações. Antes não vinham porque era sujo, escuro, desarrumados, agora não, é tudo muito limpo, organizado, claro, amplo, agradável. E como está mais iluminado e há sempre muita gente circulando, se tem sensação de maior segurança”. Aos sábado tem seresta a partir das 14h30, sendo uma das intenções o aumento da parte cultural com realização de exposições espetáculos circense, apresentação de coral, lançamento de livro, etc. O mercado foi totalmente repaginado, mas conservou todo pessoal antigo, sendo agregados novos permissionários com a ampliação, e mantendo a tradição.

CURIOSIDADES:

Flor ou sangue – O nome Rio Vermelho segundo texto de Cid Teixeira publicado no Blog do bairro se origina de Camarajibe, que pelo uso popular em virou “Camarajibe” e significa rio dos camarás (ou cambará) florzinha vermelha, muito abundante antigamente, daí rio das florzinhas vermelhas ou Rio Vermelho. Já outros dizem que a denominação Rio Vermelho foi dada por Diogo Álvares Corrêa sobre alusão a cor da água do rio Camurujipe. Outra versão atribui a cor das águas ao sangue derramado numa batalha.

Caramuru – Diogo Álvares Corrêa, como salienta o escritor Ubaldo Marques “foi protagonista de uma epopéia, onde o real e a fantasia se misturaram, numa simbiose de mistérios e lendas, que criaram uma aura de magia em torno de um homem tido como português, mas que pode ter sido espanhol ou mesmo francês”. Além de Descobridor do Rio Vermelho e cofundador da Cidade do Salvador, é Patriarca da Bahia e do Brasil tendo sido responsável pela efetiva integração entre as duas raças, o que não fora conseguido pelos degredados inicialmente deixados na terra de Vera Cruz.

O aviso da Santa – Certo dia estavam os pescadores e operários do bairro entretidos com o tradicional jogo de cartas, quando uma senhora chegou dizendo que eles deviam pegar suas jangadas e saírem, pois iam chegar tropas convocando-os para a Guerra de Canudos. De imediato eles se lançaram ao mar, escapando assim da convocação para a guerra. Atribuindo o aviso à Senhora de Santana, passaram a reverenciá-la. Por muito tempo, a festa de Santana foi a mais popular do bairro do Rio Vermelho, sendo no século XX suplantada pela Festa de Iemanjá. A data oficial da padroeira do Rio Vermelho é 26 de julho.


Uma rede solidária em prol da cultura

Por Gilka Bandeira

(http://www.youblisher.com/p/1452385-Revista-Pindorama-Ed-8)



Coordenador da Casa da Música, em Itapuã, o músico Amadeu Alves desenvolve importante trabalho cultural e ambiental no Abaeté, tendo como um dos principais frutos o grupo As Ganhadeiras de Itapuã. Dedicado ao cooperativismo, desenvolve projeto que se diferencia por privilegiar os artistas convidados: o Rede Sonora.

No Abaeté não tem mais só uma lagoa escura arrodeada de areia branca, como cantava Caymmi, tem também uma casa muito especial, a Casa da Música, arrodeada de encantamento, integrada ao circundante ambiente natural, transpirando a essência da arte como instrumento de elevação da alma e do coração. Mais que um museu ou centro cultural ativo, é polo irradiador de arte e cultura, transcendendo à comunidade local, sendo referência até internacional, “um ponto de convergência”, como define Amadeu Alves, coordenador da Casa há nove anos, a quem se deve à feição que ela apresenta atualmente.

Espaço da Secretaria de Cultura da Bahia, a Casa da Música reflete a visão pessoal do seu coordenador como músico, cidadão e amante de Itapuã, que faz parte do seu universo lírico e lúdico desde a infância. Sempre se interessou pela preservação do poético bairro, primeiramente como expectador dos esforços já empreendidos pelos mais velhos e, a partir de 1997, como protagonista, quando da criação do Grupo de Revitalização de Itapuã – Grita, “um trabalhinho destinado a revitalizar o bairro através da cultura”, conforme diz, e que resultou no grupo As Ganhadeiras de Itapuã, em 2004.

Com As Ganhadeiras, a coisa começou a ficar mais visível. “Se era possível criar um grupo como este, era possível retomar as tradições”. Ele conta que quando chegou à Casa em 2007, “um amigo disse, poxa, você encontrou um teto. É bem isso mesmo, este teto deu condição de continuar o trabalho com estrutura básica, com maior possibilidade. Portanto, estes nove anos da Casa da Música faz parte de um trabalho que em 2017 fará 20 anos”.

Museu vivo – A Casa da Música nasceu como Museu da Imagem e do Som do Abaeté, em 1993, com o propósito de preservar a memória da música baiana, reunindo 700 peças – partituras, fitas de áudio e vídeo, instrumentos e discos. Estando numa Área de Proteção Ambiental, o Parque Metropolitano Lagoas e Dunas do Abaeté, foi possível expandir as atividades da Casa para as áreas externas, associando-as à vivência ambiental e espiritual.

O acervo documental existe e é útil, entretanto, como ressalta Amadeu, a procura maior é pelo acervo vivo das tradições, do testemunho das pessoas que estão vivas. O que faz a diferença é o contato com as fontes de informação diretas, vivas, que a Casa proporciona. “A gente sempre atende, trazendo membros da comunidade para interagir com alunos e pesquisadores. São muitos trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses. Hoje Itapuã é um dos bairros mais estudados, vindo gente de outros países com frequência. Há poucos dias, informa Amadeu, “uma pesquisadora disse ter encontrado indícios da diminuição da violência local tendo o trabalho da Casa da Música como um fator preponderante”. Recentemente também, dois professores da Escola de Arquitetura da UFBA fizeram um concurso de ideias para ampliação da Casa da Música.

Assim, já são muitos os frutos que vem colhendo. Em 2015, As Ganhadeiras venceram duas das três indicações no Prêmio da Música Brasileira. Fazendo suspense, ele avisa que vêm coisas muito boas por aí. Mas apressa-se a salientar que “As Ganhadeiras constituem apenas no fruto mais vistoso, mais saboroso, mas há outros que precisam ser fortalecidos, o Bando Anunciador, Revisáfrica, Malê Debalê, o Terno de Rei de Itapuã e grupos diversos de jovens”.

Arte e Natureza - Passados nove anos, o Canteiro da Esperança (como anos atrás Bule Bule se referiu à Casa da Música), “se transformou em algo mais consistente. A semente germinou. Hoje existe uma força que já enraizou. A comunidade já se apropriou”. Tem atividades a semana toda, tanto dentro como nas áreas externas. A Casa atua em três frentes: preservando a memória e disponibilizando o acervo; promovendo a formação e o bem estar através das oficinas de instrumentos musicais (violão, contrabaixo, violino, djembê), de teoria musical, canto, xadrez e ioga; realização de eventos como os Saraus, Bate-papo Musicado, Luau, Piquenique Cultural, Caminhadas, Fogueira Filosófica. Toda atividade do lado de fora, na área do Parque como um todo, é chamado de Viva o Abaeté, “no sentido de viver o Abaeté, e saudar e reverenciar o Abaeté, mostrando que é possível estar naquele lugar antes evitado pelo medo”.

O Sarau acontece quinzenalmente às segundas-feiras, dentro da Casa, e inclui apresentação de vídeos, exposições, palestras, shows, lançamentos, venda de artesanato e de lanches típicos. Em média, 100 pessoas participam. O Bate-papo Musicado acontece na abertura do Sarau, no Luau, ou independente. O Piquenique Cultural, sem periodicidade fixa, reúne as pessoas num lanche coletivo, após realização de vivência. A Fogueira Filosófica é feita uma vez ao mês às quartas-feiras, debaixo das árvores no fundo da Casa. Ao redor da fogueira, há apresentação musical e alguém fala sobre determinado tema.

O Luau ocorre um dia depois do plenilúnio. Começa com uma atividade à tarde. Às 18h, se cria a ambiência de convergência, preparando as pessoas para o nascer da lua. As caminhadas ocorrem uma vez por mês, normalmente no segundo semestre, quando as lagoas estão mais cheias. “É muito bom ver senhoras embolando nas dunas, recordando tempo de crianças, mergulhando nas lagoas. Em seguida fazemos uma ciranda, momento de conexão com o sagrado daquele lugar, momento em que as pessoas entram em vibração contemplativa”.

Segundo Amadeu, tudo isso tem contagiado as pessoas, tem feito elas exclamarem: “poxa, isto aqui é maravilhoso, é um santuário, é um tesouro que a gente tem, e este reconhecimento é pela experiência de ver que ainda está ali vivo. Criamos um laço cultural muito além de apenas o lado artístico, e a Casa tem até servido de remédio”.

Rede Sonora

Paralelo à coordenação da Casa da Música, Amadeu cuida como artista de outros projetos como o Rede Sonora, que desde 2010 vem desenvolvendo com Fabrício Rios. A história da dupla vem de longa data, tendo origem no grupo Pé de Serra a Beira Mar, que já constituía na busca da preservação da memória cultural de Itapuã. Gravaram um disco, mas o grupo se dissolveu. “Na sequência chamei Fabricio, que propôs criar a dupla Amadeu Alves e Fabrício Rios. Em 2005, lançamos, de forma independente, o primeiro CD. Criamos uma identidade tal que desembocou no Rede Sonora”. Conta Amadeu, acrescentando que o projeto surgiu da ideia de se criar uma cooperativa de músicos, pensamento que alimenta desde criança, e ganhou fôlego com a fundação da Independência Musical Associada – IMA.

Em 2009, como iniciativa da IMA, a dupla fez uma temporada de 27 shows na Varanda do Sesi no Rio Vermelho. Lá conheceram Nati, que os convidou para se apresentarem no seu restaurante em Praia do Forte. “Em novembro 2010, fizemos o primeiro show lá e não paramos mais, sempre com convidados, já são mais de 100” - Amadeu relata. Dentre eles Bule Bule, Gereba, Margareth Menezes, Juliana Ribeiro, Xangai, Carla Visi, Tonho Matéria e o grupo Barlavento. A marca Rede Sonora começou a ganhar maior visibilidade. No início do ano, se apresentou no Mercado Iaô, realizado pela Fábrica Cultural de Margareth Menezes, na abertura de shows da anfitriã com participações de Gilberto Gil, Daniela Mercury e Carlinhos Brown. Em abril, realizaram o 1º Festival Rede Sonora de Arte e Cultura que reuniu grupos da região de Praia do Forte, Diogo e Sapiranga. Já estão pensando no 2º Festival enquanto se preparam para uma turnê nacional e para gravar um CD com projeto da Lei Rouanet já aprovado.

A Rede conseguiu a formação de uma plateia atenta. “A gente toca valsa, chorinho, às vezes música dançante, mas o público assiste à nossa interpretação. Se bem que tem horas que a coisa pega fogo”. Hoje a Rede Sonora está sendo vista como grupo musical, mas a intenção é que se desenvolva o cooperativismo. A ideia é diminuir a cultura de competição, “o cara toca num lugar e queima o outro, porque é uma ameaça pra ele. Já conseguimos mostrar na prática que é possível ter visibilidade sem afetar o brilho de ninguém, se alegrar com o sucesso do outro, ver o outro como um ser que merece tanto como você”. Diz Amadeu, frisando que estas são coisas que tem a ver com sua espiritualidade. Há 30 anos fazendo parte da União do Vegetal, ele crê “que estamos aqui para evoluir e esta evolução é desenvolver o lado da riqueza interior, amar o próximo. Há milênios se vem falando disso, mas é tanta barbaridade que acontece ainda...”

A Rede Sonora tem, pois, a missão de integrar os músicos convidados, preparando-os para o cooperativismo. A dupla Fabrício e Amadeu vem ganhando confiança, porque “Vamos para linha de trás para o convidado ficar na linha da frente. Assim conseguimos nos relacionar tanto no Sesi, como na Casa da Nati e no Ciranda Café”. Revela Amadeu, concluindo: “Então, o cooperativismo que falo é tanto por este lado do sentimento, de querer valorizar o outro, quanto o lado da cadeia produtiva, ver como a gente pode conseguir um estúdio de gravação, ver quem tem experiência numa área ou tem um serviço pra oferecer e assim criar moeda de troca dentro da economia solidária”.